Uma chamada perdida 6

Na primeira semana que se seguiu a reconciliação da nossa amizade, as coisas não iam exatamente como eu esperava que fossem. Julho e eu não éramos inseparáveis como na infância. Apenas nos cumprimentávamos, e vez por outra rolava alguma conversa de elevador. Eu tinha medo de que o episódio do banheiro tenha o deixado inseguro de novo, e me perguntava se fiz algo de inadequado, mas nada exatamente vinha a minha mente.

As coisas só foram mudar mesmo na segunda semana. Um professor de história solicitou um seminário sobre a guerra fria, e se esta havia ou não acabado, e os impactos dela no mundo moderno. O trabalho deveria ser realizado em duplas.

Hey, Stéh! Vamos compor a maior nota da sala de novo? - perguntei pra Stefanie, que sentava ao meu lado. Notei que ela estava com um bilhetinho na mão, sorrindo pra ele. Ela escreveu algo no pedaço de folha de caderno, dobrou, e passou de volta para a pessoa do lado dela, que passou pra outra, até o bilhete chegar no Mateus, um roqueiro estranho da nossa turma.

Desculpa, amigo. Acabei de aceitar fazer com o Mateus. - ela respondeu, me lançando um olhar sem graça.

Sério, Stefanie? O Mateus?

Aí, amigo… você sabe que faz tempo que eu não saio com ninguém…

O Mateus!?

Ambos damos risada. Bastou um olhar do professor para entendermos que precisávamos fazer silêncio. Talvez se eu conversasse com o professor, e viesse com a história de que não havia sobrado ninguém, ele permitiria que eu fizesse sozinho. Já tinha feito isso antes. Não seria novidade. Eu me sairia melhor sozinho.

Mas então uma mão forte pousou sobre o meu ombro. A carteira atrás de mim estava vazia, e Julho fora sentar-se ali pra falar comigo.

Você sabe que nunca fui bom em história, né? - cochichou ele no meu ouvido, me arrancando um arrepio à força.

Quando foi que você foi bom em algo?- respondi, num tom de provocação.

Você ficaria surpreso. - disse ele, mais baixo, e mais próximo do meu ouvido.

Tive que usar a capacidade total do meu auto controle pra não derreter e cair da cadeira. A única coisa que eu queria era que ele não percebesse os cabelos na minha nuca arrepiados, como os do corpo inteiro.

Então era isso. Faríamos o trabalho juntos. A apresentação era pra segunda feira, e isso aconteceu na quinta. Trocamos número de telefone, e trocaríamos mensagens para combinar a montagem. Também ficamos até mais tarde nesta quinta feira, definindo o tema e alguns detalhes mais superficiais, e voltamos pra casa juntos parte do caminho. Devagar, as coisas estavam voltando ao normal, e eu mantinha uma discreta e controlada felicidade.

Difícil era manter a distância emocional necessária para administrar a situação. Ele era apenas um amigo, um recém adquirido amigo, hétero, e eu não podia confundir as coisas. Mas passei a quinta feira inteira aguardando a mensagem dele. Que acabou chegando só tarde da noite.

Ele sairia na sexta a noite com uns amigos, então eu iria na casa dele no sábado, para finalizarmos tudo, e caso não desse tempo, teria o domingo.

Nos falamos pouco na sexta. Vez por outra, ainda acontecia a troca de olhares. Mas ao invés de ser algo desconfortável e tenso, agora era divertido, porque ele fazia gestos e caretas de longe, me provocando sorrisos.

Confesso que passei o final de semana ansioso pelo sábado. Ainda que nossa interação fosse puramente fraternal, era alguém que eu gostava. Estar com ele era bom, independente de como fosse.

Na madrugada de sexta pra sábado, acordei com o telefone. Era ele me ligando.

Que demora pra atender!!

São três e meia da manhã. Eu estava dormindo.

Dormir é subestimado.

Acho que você quer dizer superestimado.

Eu bebi demais. Já é muito conseguir falar. Você ainda quer me corrigir?

Você está bêbado. - Havia notado algo de estranho na voz dele, e agora estava claro o motivo.

É claro que estou! Sempre estou. Só o álcool me consola.

Consola de que?

Silêncio. Ele queria responder. Ele Respeitava nossa amizade o suficiente pra isso. Não sei se ele tinha mais alguém que fosse próximo o suficiente pra desabafar. Mas afinal de contas, havia apenas uma semana que voltamos a nos falar. Talvez eu estivesse enganado a respeito de tudo ser como era antes. Talvez ele nunca tenha me perdoado de verdade, e precisaremos de mais tempo pra voltar a ser como antes.

Enfim, eu só liguei pra confirmar que você vai mesmo. - ele mudou de assunto, confirmando o que eu estava pensando.

Vou mesmo onde? - por mais ansioso que eu estivesse pelo dia seguinte, eram mais de três da manhã, eu estava sonolento.

Lá em casa… fazer o trabalho.

Eu não acredito que você está me ligando às 3:30 pra confirmar se eu vou na sua casa.

Silêncio de novo. Acabei cedendo:

Sim, eu vou.

Beleza! - ele estava nitidamente empolgado. Tive medo que ficasse inseguro devido a última vez que estive lá. - vai ser dahora, cara! Vamos dar muitas risadas. E ganhar a melhor nota da classe ainda!

Conte com isso. Agora eu preciso dormir, e você precisa voltar pro seu rolê… - eu disse querendo me desvencilhar.

Verdade, cara! Desculpa! Vai lá!

Eu já ia desligar, mas o ouvi de longe no celular: - Cris! Eu… é… é muito bom ter você de volta, cara. Você é foda.

Eu não sabia o que responder. Claro que eu sentia o mesmo. Apenas fui pego de surpresa. Antes que eu pudesse pensar em uma resposta, ele percebeu o meu silêncio, e desligou o telefone. Olhei pra tela, e havia três chamadas não atendidas do número dele, de horário anterior ao da ligação que acabara de se encerrar. Pelo visto meu sono estava pesado, para só ouvir na quarta vez.

Então eu sou foda? Okay. Foda foi voltar a dormir depois disso.

Ao acordar no sábado, tomei café da manhã com meus pais, e subi pro meu quarto, pra adiantar o trabalho. Pesquisei bastante coisa sobre o assunto, joguei um pouco, ouvi música, conversei um pouco pela internet, praticando minhas habilidades de flerte on line ( e apenas online mesmo, porque tinha tremenda dificuldade de lidar com essas coisas pessoalmente), e enfim deu horário de ir pra casa do Julho.

A mãe dele me recebeu com todo o carinho do mundo. Me abraçou como um familiar distante que não via há anos, embora sempre nos víssemos pelo bairro. Disse que o Julho estava lá em cima, e que eu poderia subir. Pensei em pedir que ela avisasse ele que eu estava lá, pra não subir e ficar um clima constrangedor… Nós dois sozinhos no quarto de novo. Mas não consegui pensar em uma forma de fazer isso sem que soasse suspeito, afinal eu sempre tive livre acesso aquela casa.

Coloquei o pé no primeiro degrau da escada, e respirei fundo. Consegui visualizar o ponto onde eu havia tropeçado e perdido o equilíbrio na última vez que estive ali. Do topo da escada já dava pra ouvir o som do videogame dele. Cheguei à porta dele, entreaberta, e precisei respirar fundo mais uma vez ao dar dois toques na porta, e abri-la devagar. Porque estava sendo tão difícil? Sempre fora algo tão natural. Mas mesmo apesar do constrangimento, tinha uma sensação gostosa na boca do estômago que eu não sabia o que era.

Hey! Você demorou! - disse ele olhando pra mim de relance e continuando o jogo dele de guerra entre humanos e aliens.

Sério Julho? E como você quer tirar nota desse jeito. Era pra você estar estudando o material que combinamos.

Cara, calma. O planeta todo depende de mim. - ele mordia o lábio, lançando seu personagem em primeira pessoa no campo aberto. Matou dois ou três alienígenas antes de ser alvejado e morrer.

Você acaba de falhar em defender o planeta. Quer tentar defender sua nota do bimestre, agora?

Ano letivo. Só temos mais dois bimestres, e se eu não for muito bem nas notas daqui pra frente… Não sei,não. Já perdi a conta de quantas vezes minha mãe já confiscou o videogame. - ele se levantou. Estava sem camisa. Evitei olhar, e fui pra janela. Dali era possível ver a rua lateral, por onde eu vim. Ao me virar de novo, ele estava com uma garrafa d'água, quase secando-a. Ressaca.

Nos sentamos à frente do computador dele, e ao abrir o navegador, havia vários favoritos de pornografia. Eu disfarcei um sorriso sem graça. Ele não pareceu se importar.

Passamos a tarde toda estudando, e ajeitando uma apresentação de slides para o seminário. Levantamos fatos, questões ideológicas, a presença da guerra fria no mundo do entretenimento, desenhos infantis, etc. Era engraçado Julho entendendo pela primeira vez agora, assuntos que foram abordados durante o ano todo.

Ao anoitecer, pedimos pizza, porque sua mãe havia saído. Era uma jovem senhora solteira, num sábado a noite. Julho parecia estar acostumado. Comemos pizza na sala, vendo filme, de forma bem descontraída. Voltei a me sentir à vontade como antes. Não havia sinal da insegurança ocasionado pelo episódio do último natal que passei ali.

Ao término do filme, faltavam poucos ajustes no trabalho que eu disse que terminaria em casa. Mas Julho foi contra. Disse que se era pouco, podíamos terminar logo. Reclamei que ficaria tarde, mas ele ligou pra minha mãe, e disse que talvez eu não dormisse em casa. Minha mãe não acreditou, e pediu pra falar comigo. Achei aquilo tudo muito desnecessário, mas divertido, e expliquei a situação como um todo. Ela disse que tudo bem, pois fazia tempo que não nos falávamos, mas pra eu ter juízo. Achei engraçado ela ter dito isso. Nunca falei a verdade sobre ter parado de andar com o Julho para ela, mas ela é mãe. Mãe sempre sabe.

Julho falou pra eu subir para o quarto e ir ajeitando as coisas, que ele já subia. Eu subi desconfiado. Voltei pro computador, e estava repassando os slides, quando ouvi barulho de liquidificador.

Ele voltou com dois copos com uma bebida de aspecto leitoso como iogurte, cor de rosa.

Você ainda gosta de suco de morango com leite? - perguntou ele, com os olhos brilhando de empolgação.

Gosto. Mas acabamos de comer.

Vai bebendo devagar. - disse ele me passando o copo e piscando.

Dei um longo gole, e me deparei com um sabor diferente no suco. Não era leite, era leite condensado. E havia álcool naquilo.

Você está virando alcoólatra.

Relaxa, é sábado a noite! A gente pode curtir!

Terminamos o trabalho, e ele desceu pra encher nossos copos de novo. Estava tudo indo muito bem, então não me importei. Decidimos voltar ao videogame, e jogamos um jogo de luta. Combinamos que quem perdesse uma melhor de três, tomaria um shot de vodka. Embora eu nunca tivesse jogado, peguei rápido a dinâmica do jogo, então bebemos mais ou menos na mesma medida. As risadas foram ficando mais frequentes, o volume da voz mais alto, e o contato físico também. Em dado momento, enquanto a luta estava mais acirrada, ele começou a me empurrar com os ombros pra me atrapalhar. Eu me desvencilhei dele, e ele caiu com o cotovelo no meu colo, não se importando até ganhar a partida, e levantar os braços pra cima, em sinal de vitória, gritando e indo buscar mais um shot pra mim. Acho que ele não percebeu minha ereção quando apoiou o braço no meu colo tentando ganhar de mim.

Eu não aguento mais beber - Disse, e me esparramei na cama dele. O álcool no meu sangue me deu uma estranha familiaridade com a minha virilidade, de modo que não me importei de esconder que havia ficado excitado.

Deixa de ser viado, que a noite estava só começando, e deitou do meu lado na cama dele.

O que você quer dizer com isso? Ser viado é uma coisa ruim?

Não, calma lá. Não foi o que eu quis dizer… Porra, eu falei merda neh? Desculpa aí, cara. É que eu passo muito tempo com gente idiota, que acabou ficando idiota também.

Gostei da sinceridade dele. E da sensatez também, em admitir que foi babaca. Mas o fato dele saber da minha sexualidade e ainda assim estar tão à vontade comigo, deitado ao meu lado, na cama de solteiro dele, e sem camisa, só me fazia respeitar ainda mais nossa amizade.

Por mais que fosse difícil sentir o cheiro de suor dele, o calor da pele dele, e não poder fazer nada.

De repente ele virou a cabeça, pra olhar pra mim na cama. Olhei de volta depois de um segundo. Ele analisava os traços do meu rosto, sério. De modo que fui obrigado a fazer o mesmo. E como aquele rosto era lindo. Não era uma beleza óbvia, com olhos azuis e nariz retinho e bem feito. Mas ainda assim ele tinha uma beleza característica. Eu sorri, com uma expressão questionadora.

Eu senti muito a sua falta, sabia? - disse ele sério, olhando nos meus olhos.

Ah é? - perguntei em tom de deboche, ainda sorrindo. Ele sorriu também.

É sério. Você é meu melhor amigo. Eu te amo.

Estarreci ao ouvir aquelas palavras. Ainda mais em um contexto daqueles. Meu sorriso se desfez automaticamente. Ele percebeu. Um calor tomou conta de mim, vindo de dentro pra fora, e senti que meu rosto queimava. Me levantei, sem graça, e ele também.

Acabei de lembrar que tem um abacaxi na geladeira! Agora o barato fica louco!

Chega de bebida! - gritei pra ele, enquanto ele já descia as escadas.

Vai beber sim!! - gritou ele lá de baixo

Eu dei risada, e percebi que o recíproco também era verdade. Não importava de que forma. Eu amava aquele garoto.

Continua


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Comentários

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28/06/2020 21:34:44
Como é bom amar....
27/06/2020 16:14:12
Cara pelo amor de Deus, eu sofro de ansiedade kkkkkkk volta logo
25/06/2020 07:36:30
Continua
22/06/2020 20:52:56
CARA VC É MUITO BABACA. JULHO FAZ MERDA E VC PERDOA. ESTÁ NA CASA DELE E ELE TE DOMINANDO. APOSTO QUE ESTÁ TE EMBEBEDANDO PRA TE COMER. E DEPOIS DIZER QUE FOI VOC~E QUE SE OFERECEU BÊBADO PRA ELE. E AINDA, POR QUE VC SE CULPA PELOS ERROS DO JULHO? ELE FOI O ERRADO E VC QUE SE SENTE MAL. NÃO ENTENDI ISSO.
22/06/2020 20:48:21
Fofos
22/06/2020 14:26:18
Continua Logo
22/06/2020 14:26:15
muito bom esse conto.
22/06/2020 14:02:59
amando
22/06/2020 07:02:04
Eles vão se pegar com certeza
22/06/2020 03:29:43
Continua Logo please 😊😊😊😊
22/06/2020 01:58:50
Continua, tá muito bom


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