Conrado era bom, muito bom. Voz e violão. Ele tinha nascido para aquilo.
O Jadão não tirava os olhos de Miguel. A letra da música era sua. Sua declaração para Miguel. Conrado balançava o cabelo, removendo charmosamente dos olhos, alguns fios. Mantendo a visão sempre fixa em seu objeto de contemplação: Miguel.
Miguel estava com a face vermelha e olhos arregalados ao máximo. Seu coração parecia que queria fugir de seu peito, pressionando suas costelas com violência. Ele não sabia o que pensar, dizer, fazer. Não conseguia deixar de olhar pra Conrado, deixar de beber da sua beleza e se perder naqueles olhos azuis. Inferno, pecado, religião. Nada daquilo era pesado naquele momento. Momento! Exatamente. Era só o momento que o importava. Que importava aos dois.
As crianças haviam adorado. Miguel havia se entregado aquela avalanche de sensações, que o puxava como uma atração magnética.
Depois da música houve o silêncio do pós, onde ninguém sente coragem pra dizer alguma coisa, pois não há nem uma palavra suficiente pra descrever o que só o coração entende. Conrado havia mais do que cantado, havia desabafado. E por mais que a sensação de erro tivesse lhe percorrido a espinha, ele não estava arrependido. Ato consumado.
Miguel saiu do Hospital Jadão fechado em seu silêncio reflexivo. Naquele momento era melhor não dizer nada antes de se pensar com calma. Conrado parecia compartilhar da mesma opinião.
À tardinha Miguel foi ver Christiane e lhe contou tudo. Ele precisava dividir com alguém o que estava sentido, e esse alguém só poderia ser ela. Ela, como sempre, despejou os seus exageros, mas ficou contente em ver o primo tão mais afirmado e não tentou pressioná-lo, às vezes é melhor deixar o outro arriscar seus passos por conta própria.
Após uma tarde com a prima, Miguel se despediu e voltou para a sua casa. Christiane insistiu em lhe levar de carro, mas ele disse que gostava de andar. Então foi embora.
Absorto nas muitas conjecturas, não percebeu quando um carro brecou o seu caminho, já afastado da casa da prima.
- Olha, olha, uma ovelhinha fora do rebanho – Pezão desceu do seu jipe ao lado de Azeitona.
- Eu não quero confusão com ninguém, agora, por favor, me deixa em paz e... Um tapa violento no rosto, dado por Pezão, calou Miguel.
- Cala a boca seu viadinho de merda, eu não mandei você falar nada! – Pezão o olhava com olhos de demônio. – Junta a florzinha do chão e joga no jipe, Azeitona.
Prontamente o capacho gordo agarrou Miguel pelos cabelos e empurrou no carro.
- O que vocês vão fazer comigo? – Miguel estava desesperado. Outro tapa. Dessa vez Pezão arrancou sangue da boca de Miguel.
- Eu queria na verdade fazer papa dessa tua cara de princesa, mas eu não quero queimar o Demolidor com o pai dele, então o serviço vai ser sem tanta violência, eu acho – Pezão soltou sua gargalhada horrenda ao lado de Azeitona. – Mas a brincadeira vai ser legal. – mais risos.
O carro de Pezão seguiu para fora da cidade, enveredando por um caminho deserto rodeado de um matagal interminável. Miguel soluçava, e tremia de medo.
- Os crentes afirmam que vão pra o céu, não é bicha? – disse Pezão. – Bem, hoje vou te provar que a coisa não é bem assim não. – Mais risos.
O carro avançava velozmente. A noite já havia caído em seu pleno breu. Em determinado trecho, passaram por uma placa feita de latão com os seguintes dizeres escritos com uma letra horrenda:
“BEM VINDO AO INFERNO”. Inferno era o nome do lugar onde os frigoríficos depositavam os restos inúteis de seus abates, além de animais mortos.
Um cheiro horrível começou a penetrar no carro que tinha os vidros semiabaixados. Miguel quase vomitou no banco, enquanto os outros dois faziam caretas, tampando o nariz.
O carro parou no acostamento, e Pezão arrancou Miguel com força, arremessando-o no chão.
Logo o rapaz de moicano, deu uma sequência de chutes na barriga do caído, medindo sua violência pra não causar muitas marcas, mas cuidando para que doesse bastante.
- Vamos começar a diversão – disse Pezão tirando uma navalha do bolso.
- Por favor, não faça isso – Miguel chorava e orava em silêncio, suplicando uma intervenção divina.
Pezão subiu em cima de Miguel, sentando em seu peito, enquanto prendia os braços dele com suas pernas. Ainda deu dois tapas e colocou a ponta da navalha na garganta do rapaz. Azeitona se deliciava com a cena.
- É hora do Juízo Final – sorriu Azeitona.
Pezão segurou com firmeza os cabelos de Miguel e começou a cortá-los com a navalha. Miguel se debatia, gritava, suplicava por Deus, enquanto o outro sorria com gosto, cortando os cachos dourados.
- Grita bichinha, grita! – Pezão se deliciava.
Trabalho concluído. Pezão se levantou e começou a fazer xixi na cara de Miguel, que aumentava o choro.
- Agora a cereja do bolo é com você Azeitona – disse Pezão enquanto juntava os cabelos de Miguel numa sacola.
Azeitona arrastou o rapaz pela perna e o empurrou em uma ribanceira rasa. Miguel caiu dentro de um poço pútrido de restos de animais em decomposição.
- Reza pelo purgatório – Pezão sorriu, olhando Miguel na lama podre.
O jipe saiu em disparada, fazendo o caminho contrário.
Conrado jantava com a família, quando seu celular tocou. Era uma mensagem de Pezão pedindo pra que ele saísse da mansão. Em silêncio e sem muita disposição, ele abandonou a mesa e foi ao encontro do outro.
- Meu firmeza! Vim mostrar a prova do cumprimento da minha promessa – disse Pezão ao lado de Azeitona, tocando firme na mão de Conrado. Estavam próximos ao muro da mansão.
- Do que você está falando? – perguntou Conrado.
- Te falei que ia provar o valor da nossa amizade – Pezão jogou uma sacola pra Conrado. – Abra e diga se eu não sou demais.
- Essa você vai gostar – riu Azeitona, na expectativa de ver a reação de Conrado. Conrado começou a tirar chumaços de cabelos cacheados. Ele se ficou pálido ao reconhecer aquele ouro capilar.
- O que você fez?! – ele gritou com Pezão. O coração de Conrado pulsava com violência. –Dei uma lição no viadinho crente que teu pai protege. Aquele otário nunca mais banca o engraçadinho com a gente – sorriu Pezão
- Onde está o Miguel?! – Conrado limpou o suor da testa muito nervoso. – Responde porra!
- Ele tá no Inferno agora – adiantou-se Azeitona.
Conrado sentiu o crânio ser esmagado pelas palavras de Azeitona.
- Vocês mataram o Miguel?!
- Claro que não Demolidor, jogamos a bichinha no carniceiro da cidade, o “Inferno”. – explicou Pezão.
Sem perder tempo, Conrado empurrou os outros dois que estavam em seu caminho, e correu velozmente rumo à garagem da sua casa. Pegou o seu carro e saiu feito um louco, ignorando as indagações de Pezão e Azeitona. Com os olhos em cascatas, torcendo para que Miguel estivesse bem, ele ia cantando pneu no asfalto, tendo o remorso e a culpa como suas companhias de viajem.
- Miguel, me perdoa – ele assuava o nariz em desespero. – Por favor, esteja bem.
A estrada parecia sem fim, assim como a angústia que Conrado sentia. O caminho que levava para o “Inferno” era deserto, poucos veículos passavam por ali, ainda mais durante a noite. Se houvesse alguma alma vivente pra aqueles rumos, boa coisa não seria.
- “É culpa minha. É tudo culpa minha” – ele repetia em pensamento, limpando o rosto com as costas da mão. Seu pé pisava fundo no acelerador, no compasso de seu coração em angustiado.
Miguel estava com meio corpo imerso na lama pútrida formada da decomposição. O odor era indescritível. O sufocava. O impedia de pensar.
- Socorro! – ele gritava chorando, tentando sair dali, mas parecia areia movediça – Meu Deus, por que o Senhor permitiu que isso acontecesse comigo? Não tenho te satisfeito o bastante? Eu sei... – ele começou a chorar convulsivamente. Estava preso apenas por um galho na ribanceira que ele segurava com muita força, enquanto sua outra mão tapava sua boca, na tentativa em vão de evitar que alguma coisa dali entrasse por esta. Seu cabelo sem cachos estava repleto de vermes brancos gigantescos, assim como seu ouvido – Meu Deus! – mesmo com a mão abafando a boca, o grito era estridente.
O silêncio era tão horrível quanto aquele lago infernal.
Miguel, sem obter resposta divina, parou o choro subitamente, e compreendeu que só derramar lágrimas não ia o fazer sair dali. Juntou o resto de força que tinha, e usou a mão livre para tatear a parede da ribanceira a procura de algo para lhe alavancara para cima. Não havia luminosidade, além de alguns vaga-lumes que vagavam por ali.
Depois de muito esforço, o rapaz começou a sentir umas pedras firmes, cravadas na terra. Forçou para ver se eram seguras e constatou que poderiam servir.
- Força Miguel! – ele dizia pra si, soerguendo-se.
Sua mão foi alcançando uma pedra atrás da outra, enquanto seu pé buscava apoio nas que iam ficando para trás. A alguns centímetros da “superfície”, ele escorregou o pé, ralando um joelho no atrito, mas não caiu.
- Calma Miguel. Você consegue... Ai – ele sentiu o joelho machucado arder. Empreendendo mais esforço, o corajoso rapaz conseguiu sair dali. Estava imundo. A lama podre cobria seu corpo, principalmente do tronco para baixo. Miguel começou a se arrastar pela estrada até que sentiu o toque áspero e morno do asfalto.
- Obrigado Senhor! Obrigado Senhor! Obrigado senhor – ele sorria e chorava ao mesmo tempo. Ali, na estrada principal, seria mais fácil encontrar ajuda.
Exausto, Miguel deitou a face no asfalto, esticando as pernas e os braços para lados opostos. Estava quebrado, humilhado, mas vivo.
Um lampejo de luz ascendeu no céu clareando por alguns segundos o local. O céu estava completamente tomado por nuvens carregadíssimas. Logo veio uma precipitação. As gotas grosas se chocavam contra seu corpo, removendo lentamente a nojeira de cima dele. Pela primeira vez ele provou de uma sensação que muitos desconhecem: sua mente estava completamente vazia. Nada lhe vinha em pensamentos. Um gélido e escuro vazio permeava sua alma.
Ele não tinha noção de horas. Não sabia quanto tempo já estava ali. Mas em um determinado momento, uma luz ofuscante atingiu seu rosto, isso fez com que seu corpo reagisse rápido. Miguel levantou os olhos e viu dois faróis apontados para ele. Alguém desceu com pressa do carro, e veio ao seu encontro. A chuva descia em cascatas.
- Miguel! Oh meu Deus! – ele reconheceu a voz, e logo viu o rosto do resgatador. Conrado estava desesperado.
- Não! Por favor, não faça mais nada comigo! – ele gritou em desespero, recuando o próprio corpo na direção oposta de Conrado.
- Eu não vou fazer nada de ruim com você, confia em mim – pediu Conrado, com a voz embargada. Ele estava revoltado com o estado deplorável de Miguel.
- Não! Eles te mandaram aqui pra terminar o serviço não foi? – Miguel impunha as mãos em direção a Conrado, em sinal de “Pare”.
- Quando aquele filho da puta do Pezão me disse o que tinha feito com você eu vim correndo ti procurar – ele tentava explicar – Eu jamais pediria para ele fazer algo assim.
Não mais agora, e muito menos com você. – Conrado se abaixou de cócoras mais perto de Miguel, que o encarava ainda receoso – Confie em mim? – Conrado estendeu sua mão pra ele.
Miguel, trêmulo, deu a sua lentamente.
- Confie em mim? – Conrado sorriu apertando a mão do outro.
- Confio – respondeu Miguel, tremendo os lábios por causa da chuva que apertava cada vez mais.
- Vamos sair daqui – Conrado o pegou no colo e correu para o carro. Só os olhos de Miguel permaneciam iguais. Era como se ele tivesse ido para uma luta de sumô em um chiqueiro, a diferença era que o cheiro era pior.
No carro nem uma palavra fora dita, mas Conrado cuidava de Miguel com os olhos. Ele estava deitado no banco do passageiro, encolhido.
Chegando à mansão, Conrado entrou subitamente assustando seu pai e Júlia.
- Como você sai sem dizer nada... – Luciano se calou quando viu Miguel nos braços de seu filho – O que aconteceu Conrado? O que você fez com Miguel?
O cheiro horrível invadia a casa. Júlia tremia perplexa diante da cena. Miguel estava acordado mais não dizia nada.
- Depois vocês me achincalham a vontade, mas agora me ajudem com ele – Conrado subiu as escadas até o seu quarto, entrando direto no banheiro.
- O que fizeram com você Miguel? – os olhos de Júlia se encheram de água. Luciano chegou atrás com uma maleta de Primeiros Socorros.
Conrado o sentou no Box, ligando o chuveiro com água quente. A lama podre deixava seu corpo rapidamente.
- Eu assumo – disse Luciano entrando e fechando a porta. – O que aconteceu Miguel? Ele só chorava.
- Vamos tirar essa roupa – Luciano começou a desabotoar a camisa dele. Miguel não reagiu.
Sem roupa, e encolhido como uma criança em defesa, ele foi higienizado pelo pai de Conrado delicadamente.
- Vai ficar tudo bem – o médico dizia, lavando o que sobrou do cabelo do rapaz. Miguel assentiu com a cabeça. Lá fora a chuva era violenta.
Ao fim do banho, Luciano foi cuidar dos ferimentos. Fez os curativos, e lhe deu alguns comprimidos para dor e para os nervos. De roupão, Miguel deitou-se na cama de Conrado e fechou os olhos, mas não dormiu.
- Agora o senhor vai nos explicar o que aconteceu direitinho! – Luciano descia as escadas, encarando Conrado, ao lado de Júlia, com muita raiva.
- Mesmo que não acredite em mim, vou contar como tudo aconteceu – disse o rapaz. Conrado relatou tudo que sabia, desde a discussão de Pezão com Miguel, até o “Inferno”.
- Esse delinquente deveria ir pra cadeia! – gritou Júlia indignada. – Como alguém é capaz de fazer algo ruim pra uma criatura como o Miguel?
- Amanhã vou começar com Luís e esse marginal vai ter o que merece! – vociferou Luciano – E quanto a você...
- Eu não tive culpa de nada! – gritou Conrado, mais desesperado do que irado.
- Sua consciência vai cuidar de você, eu não preciso dizer nada – Luciano subiu de volta ao quarto.
- Vou pedir para a empregada preparar um chá para ele – Júlia foi para a cozinha e deixou Conrado sozinho.
O filho de Luciano chorava baixinho, encolhido no sofá.
- Miguel! – chamou Luciano Jadão, entrando no quarto de Conrado. Miguel abriu os olhos assustado.
- Desculpa ter te acordado, mas acho que é melhor ligar para o seu pai, pois ele deve estar muito preocupado com sua ausência.
- Ele não está na cidade senhor – disse Miguel com a voz cortante.
- Então você vai dormir aqui – determinou Luciano. – Fique tranquilo. Está seguro agora.
Minutos depois Júlia entrou com um chá fumegante.
- Trouxe pra você meu anjo – entregou-lhe com uma dedicação materna.
- Obrigado – Miguel recebeu, sorvendo mais que depressa o chá de camomila.
- Você precisa de mais alguma coisa? – perguntou Luciano.
- Preciso apenas dormir e esquecer esse dia – respondeu Miguel.
- Saiba que isso não vai ficar impune – falou Júlia, tocando em seus cabelos. Estavam horríveis. Também pudera, cortados a canivete.
Luciano lhe deu um pijama de Conrado, que ficou grande no corpo dele, mas era confortável.
- Boa noite meu filho. Qualquer coisa não hesite em nos chamar – disse Júlia beijando sua testa.
- Boa noite Miguel – também desejou Luciano.
Miguel se jogou na cama enorme de Conrado e caiu em um sono profundo. Os remédios e o chá felizmente deram efeito.
Já muito tarde, Conrado entrou em seu quarto e foi tomar um banho. Vestiu-se e colocou um colchonete no chão ao lado da cama, onde o outro respirava calmamente.
Conrado não resistiu e se aproximou lentamente da cabeceira de Miguel. Ficou vigiando o sono dele. Dormindo ele lembrava mais ainda um anjo. Era lindo, sereno e doce. Conrado tocou as pontas dos dedos no cabelo de Miguel, descendo o toque pela face até chegar a suas bochechas, ali ele fez um carinho demorado, com muito cuidado e sutileza para não acordá-lo. Seus dedos seguiram para os lábios de Miguel, Conrado fazia o contorno como se pincelasse. Uma vontade louca de tocar seus lábios naqueles lábios lhe subiu a cabeça. Ele se abaixou, sentindo a respiração de Miguel se unir com a sua, e direcionou seus lábios sedentos ao encontro dos lábios do outro. Quando estava apenas a alguns centímetros para beijá-lo, Miguel se mexeu e virou para o outro lado. Conrado se afastou rapidamente, como se sua razão, antes perdida, houvesse retornado. Cobriu bem Miguel, e beijou-lhe a mão. Antes de deitar, ele ainda olhou para o quadro de sua mãe e disse em pensamento:
“Cuida dele pra mim”.
Na manhã quando Miguel acordou, sentia o corpo todo dolorido, mas estava bem. Era como se os horrores da noite anterior tivesse caído para segundo plano, por uma intervenção divina.
O colchonete em que Conrado dormira estava desarrumado e vazio.
- Bom dia – entrou Júlia com uma bandeja cheia de gostosuras.
- Bom dia – respondeu Miguel com seu sorriso de costume.
- Está se sentindo melhor?
- Sim – ele respondeu, se sentando na cama.
- Eu liguei para sua prima Christiane, achei melhor não importunar o pastor – Júlia pousou a bandeja na cama.
- Ela deve ter ficado muito preocupada – suspirou Miguel.
- De fato! Ficou com você até agora pouco, mas disse que era melhor não acordá-lo – disse Júlia. – Ela trouxe roupas, escova de dente, coisas pessoais para você. Eu pus tudo no banheiro.
Miguel tomou um banho bem demorado, vestiu-se, e voltou para junto de Júlia. Em alguns minutos devorou todo o café que ela havia trazido. Nunca havia sentido tanta fome.
- Você é muito forte – observou Júlia com olhos encantados. – Passar por tudo aquilo que passou, e continuar assim...
- Assim como? Faminto – eles riram.
- Não. Continuar bem – explicou Júlia.
- Eu sei que você não acredita na Bíblia – ele sorriu levemente. – Mas tem um versículo que me ajudou muito naquele lugar, e até hoje: 2 Coríntios 12:10 – “...Quando estou fraco então sou forte”. É nas fraquezas e na dor, que descobrimos que podemos construir grandes coisas a partir das cinzas da destruição.
- Eu acredito na sabedoria bíblica – rebateu Júlia. – Só não acredito nas doutrinas humanas criadas sobre elas, para interesse pessoal.
Eles ficaram apenas se olhando, com uma serenidade compartilhada.
- Você está precisando de uns ajustes nesse cabelo meu amigo – Júlia bagunçou o cabelo de Miguel. – Eu posso dá um jeito se você quiser.
- Você entende de cortes de cabelo?
- Foi assim que eu paguei minha faculdade – ela sorriu. Júlia pegou uma tesoura e começou a trabalhar.
- Queria perguntar algumas coisas – disse Miguel, sentado de costas apra Júlia, enquanto ela tesourava seu cabelo.
- Pergunte – ela concordou.
- O que você pensa sobre algumas questões da Bíblia.
- Como, por exemplo?
- É... As condenações, os pecados graves, práticas impuras – Miguel era vago.
- Entendi – falou Júlia percebendo a dificuldade de Miguel de ser específico. – Em primeiro lugar Miguel, é importante que você saiba algumas coisas a respeito das traduções bíblicas. Nunca te falei isso por que não queria deixá-lo confuso em nossas conversas sobre religião, mas já que está perguntando, creio que posso expor alguns fatos. A Bíblia é um livro com alto teor cultural. As traduções são apenas uma aproximação do que o escritor queria de fato expressar. Já que segundo a linguagem, não existe uma transição de idioma perfeitamente correspondente. Existe uma vertente da filosofia chamada hermenêutica, onde se interpreta o significado das coisas e das palavras. Acredite, não existe um consenso em relação ao significado real de muitas passagens bíblicas. O homossexualismo, por exemplo.
Miguel sentiu como se Júlia estivesse lendo seus pensamentos.
- Malakoi e Arsenokoitai, essas são as palavras que supostamente se referem ao homossexualismo – continuou Júlia. – A tradução literal significa “mole”, “macio”. Mais muitos tradutores, a luz de sua própria razão e de estudos incompletos, deduziram o significado para pervertido e efeminado. Só que efeminado naquele tempo, era um homem que tinha muitas mulheres.
- Então, você está afirmando que a Bíblia não condena a sodomia?
- Sodomia? – Júlia riu – Sabia que esse termo não pertence ao original bíblico? Foi criado por São Tomás de Aquino e difundido como termo da Bíblia. E sodomia significa perversão sexual tanto homossexual como heterossexual. Miguel eu não sou uma antirreligiosa, mas não posso aceitar uma afirmação que foi colocada na minha cabeça sem eu ao menos ter o direito de contestar. Veja, naquele tempo se uma pessoa quebrasse a lei do sábado ela deveria ser punida com a morte.
- Eu sei.
- E hoje, em nossa cultura, isso seria aceitável?
- Seria um crime hediondo – concordou Miguel.
- Exatamente! Mas para eles era aceitável, pois a cultura os influenciava, assim como influencia o mundo até hoje – Júlia havia terminado o corte. – A Bíblia é muito clara quanto à perversão sexual. Há indícios de que Sodoma e Gomorra foram destruídas pela ambição e a orgiolatria e não pelo ato homossexual em si como as religiões ensinam. Existem muitas dúvidas com relação às traduções dos originais bíblicos. Mas se Deus é amor, como eu posso acreditar que entre duas pessoas que se amam não há algo divino? Se eu acredito que Deus é amor, como eu posso achar que ele poria características em alguém, para depois condenar por algo intrínseco a natureza deste? Perguntas são muito perigosas, destroem doutrinas e derrubam templos.
Miguel ficou perplexo com tudo o que ouvira. Poderia ter sido tão cego durante esse tempo todo?
- Nossa! Você ficou muito bonito de cabelo curtinho – disse Júlia. – Está com o rosto em evidência.
- Gostei também – ele concordou olhando para o espelho.
- Bem, meu amor, eu vou ter que ir, minha agenda está cheia hoje – disse Júlia.
- Eu vou com você.
- Não. É melhor você descansar.
- E deixar meus bebês sozinhos? Não. Eles são meu revigoramento – Miguel foi firme. Os dois desceram, e encontraram Conrado sentando na sala.
- Onde está seu pai? – perguntou Júlia.
- Ele já foi – respondeu Conrado – Como você está Miguel?
- Vivo – ele sorriu um pouco. – Estou melhor dentro do possível.
- Eu quero que você saiba que eu não tive...
- Eu disse que confiava em você, lembra? – Miguel o interrompeu.
- Lembro – Conrado se agitava muito, ele queria dizer tantas coisas para ele.
- Então vamos – Júlia pegou sua bolsa.
- Você se importaria de ir comigo Miguel? – perguntou Conrado.
- Não sei se é uma boa ideia – interveio Júlia.
- Não se preocupe eu não vou deixar nada acontecer com ele – garantiu Conrado.
- O que você acha Miguel? – quis saber Júlia.
- Tudo bem – ele concordou.
- Olha lá o que você vai fazer Conrado – falou Júlia – Estou saindo.
Miguel e Conrado seguiram para o carro do último. Antes de saírem, Conrado pegou o celular e fez uma ligação.
- Ei, preciso ver você daqui a uns 10 minutos – ele disse. – Me encontra na Rua Renascer. Tchau.
- Quem era? – perguntou Miguel com receio.
- Você vai descobrir – respondeu Conrado – Ficou muito bem de cabelo curto.
- Obrigado
Conrado seguiu para o endereço mencionado no celular. Era um lugar pouco movimentado, com muitas residências de muro alto e nem um ponto comercial, ou seja, poucas pessoas a vista.
- Não vamos para o hospital? – Miguel estava nervoso.
Conrado ficou em silêncio, parando o carro perto de um jipe verde estacionado.
- Desce! – ele olhou para Miguel.
- O que você vai fazer?
- Já disse que você vai ver, agora obedeça – Conrado estava autoritário.
Os dois desceram e caminharam rumo ao jipe. Miguel começou a sentir vontade de chorar quando reconheceu o veículo.
- Fala aê Demolidor! Por que me acordou tão cedo? – um rapaz de moicano saiu do jipe acompanhado de um gordinho.
- Vim bater um papo com vocês, Pezão – disse Conrado, apoiando as mãos na cintura.
- Algum problema Conrado? – perguntou Azeitona.
- Ah, ele trouxe o viadinho pra gente se divertir mais – sorriu Pezão. – Ele até que ficou parecendo homem com esse cabelo, né Azeitona?
- Verdade – sorriu Azeitona.
- E então meu firmeza, o que você manda? – perguntou Pezão. Miguel recuava pra trás temendo o que seria feito com ele.
- Vamos nos divertir um pouquinho – sorriu maliciosamente Conrado.