Meu Desejo - Capítulo Três

Da série Meu Desejo
Um conto erótico de M.K. Mander
Categoria: Gay
Contém 3780 palavras
Data: 17/10/2023 01:48:50
Assuntos: Gay, Homossexual

CAPÍTULO TRÊS

*** HUGO MALDONADO ***

Com a ajuda de Marina, sua motorista, Beatrice desce do carro e vem correndo em minha direção. Já agachado e com os braços abertos, é impossível não sorrir quando aquela coisinha pequena vem gargalhando para os meus braços.

— Papai! — grita ao se pendurar em mim e eu fecho os olhos por um segundo, antes de me levantar com ela no colo. Puxo uma inspiração profunda, absorvendo o momento. Mesmo que essa cena se repita todos os dias, nunca parece o bastante. — Hoje eu pintei um quadro grandão! — Não espera sequer que estejamos em movimento antes de começar sua parte favorita de chegar em casa: me contar tudo o que fez na escola.

Beatrice estuda em período integral. A escola em que ela está matriculada é de origem canadense e tem um padrão de ensino bilíngue internacional. Apesar do número considerável de horas que ela passa dentro da instituição, cada uma delas é planejada para que a criança tenha máximo aproveitamento do ambiente de ensino, o que passa pelas aulas, logicamente, mas permeia horários de lazer e até mesmo a alimentação oferecida.

Consigo acompanhar cada etapa do dia da minha filha pelo aplicativo da escola, desde as tarefas realizadas em aula até a quantidade de comida ingerida e a deixada no prato, ou o número de biscoitos que Beatrice comeu no lanche. Até mesmo quantas vezes que a minha filha usa o banheiro é registrado e disponibilizado para mim em tempo real.

— É mesmo, filha? E o que foi que você pintou? — pergunto, caminhando com ela para dentro de casa e indo na direção do seu quarto.

— Um cachorro!

— E de que tamanho ele era?

— Do tamanho do tio Breno! — A resposta me faz gargalhar alto. — E eu também pintei a minha festa de aniversário, papai.

— E como ela era?

— Colorida! — Essa é mais uma resposta que me faz rir. Colorida definitivamente define uma festa de aniversário infantil. — E o Professor Pedro me deixou ajudar a guardar os pincéis depois da aula de artes! Eu ganhei uma estrela por ter colocado tudo no lugar certo — Beatrice diz quando estamos subindo as escadas.

Professor Pedro, o auxiliar de turma. Tenho ouvido esse nome diariamente nos últimos meses e preciso me lembrar de pedir à coordenadora da escola que o tal homem esteja presente na próxima reunião de pais. Normalmente, participam delas apenas as professoras regentes das turmas, mas já passou da hora de eu conhecer o homem de quem minha filha não passa um dia sequer sem falar.

Ela é capaz de permanecer dias sem tocar no nome de qualquer uma das suas outras quatro professoras e isso só me deixa mais intrigado quanto ao motivo do seu apego ao auxiliar. Talvez eu faça um esforço para conhecê-lo no aniversário da Be, no próximo fim de semana.

Chegamos ao quarto de Beatrice e eu a coloco no chão. O ambiente em tons pastéis de rosa, azul e verde, tem papel de parede floral e marcenaria planejada com móveis em formato de casinhas. A cama tem telhado e janelas, e a área de brinquedos setoriza as peças em pequenas vilas coloridas.

Conhecendo nossa rotina, minha filha senta-se no banquinho e começa a tirar os sapatos, se preparando para o banho. Paro atrás dela e solto seus cabelos do coque que ela decidiu usar hoje, depois, a deixo retirando as meias para pegar as roupas que já havia deixado separadas e a espero na porta da suíte. Descalça, Beatrice entra no banheiro e tira o uniforme escolar e a calcinha infantil com estampa de doces. Ela entra sozinha no box e eu abro o chuveiro, porque sua mão ainda não alcança o registro.

Ofereço o sabonete e ela pega logo depois de entrar debaixo do jato de água morna. Beatrice se ensaboa e me devolve a barra com cheiro de flores antes de se enxaguar. Depois, estende a mão, pedindo o shampoo. Coloco uma quantidade pequena na mãozinha estendida e, como ensinei, ela aperta bem os olhos antes de passar o produto nos cabelos e logo depois os enxágua. Ela estende a mão uma última vez e eu coloco um pouco de condicionador para que ela repita o mesmo processo do shampoo.

A perspectiva de criar, sozinho, uma menina não pôde ser descrita como nada menos do que apavorante. Quando Beatrice e eu chegamos em casa uma semana após o seu nascimento, passei horas sentado com ela em meus braços na poltrona de amamentação que Thaís havia escolhido, sem deixar que ninguém a tirasse de mim, me perguntando como eu deveria fazer isso sozinho.

Troquei as fraldas precariamente com o auxílio da minha mãe e das profissionais que eu havia contratado, dei de mamar, coloquei para arrotar e dei banho sem deixar que ninguém além de mim se responsabilizasse por qualquer uma dessas coisas nos primeiros dias. Eu precisava aprender e precisava fazer isso rápido. Ela era minha filha, era tudo o que eu tinha e se eu não pudesse ser o mesmo para ela, do que eu serviria?

Eu nunca estive realmente só, desde o momento em que anunciamos a gravidez, meus pais e Breno assumiram o papel de rede de apoio, no início, uma praticamente desnecessária e, depois, a única barreira entre eu e a insanidade, aquilo que me manteve de pé, dia após dia. Minha esposa não tinha familiares vivos. Os pais de Thais faleceram dois anos depois do nosso casamento, ela foi uma filha da velhice, temporã.

Apesar do absoluto pavor inicial, um pequeno passo atrás do outro, Be e eu fomos construindo uma rotina, nem sempre eu a entendi e eu arrisco dizer que ainda haverá muitos momentos em que ela vai pensar o mesmo a meu respeito, mas agora, com minha filha prestes a completar sete anos de idade, não há nada no nosso dia a dia que eu não ame, que eu não tenha a certeza que é a única razão pela qual eu respiro.

— Vamos lá? — pergunto, estendendo o pequeno roupão felpudo. Beatrice é capaz de ficar horas debaixo do chuveiro se deixarem. Ela balança a cabeça, confirmando, e pisa fora do box, no tapete atoalhado.

Fecho o registro depois que ela está bem embrulhada do lado de fora do box e ela começa o trabalho de se secar. Eu a ajudo, mas ela se mantém no roupão e senta na pequena penteadeira do banheiro. Eu pego o pente e o secador, me preparando para aquela que eu sei ser a parte favorita de Beatrice no nosso ritual, o momento em que eu seco e penteio os seus cabelos.

Ela fica quietinha, aproveitando o jato morno e a massagem suave do pente em seu couro cabeludo. Alguns dias ela até mesmo dorme e eu preciso acordá-la para que ela termine de se vestir e jante. Hoje não é um desses dias. Embora saia do banheiro muito menos enérgica do que entrou, minha filha ainda está completamente acordada quando termino de pentear seus cabelos. Deixo um beijo em sua testa antes de perguntar.

— O que vamos fazer hoje? Ver televisão ou ler? — Ela inclina a cabeça e leva a mão ao queixo, imitando o gesto involuntário que faço quando estou pensando sobre alguma coisa. — Vamos ler! — Decide! —A história da chapeuzinho vermelho! — Eu sorrio. Vamos ler, então.

*************

Estaciono o carro na garagem subterrânea do condomínio de apartamentos a apenas quinze minutos de casa e olho para o relógio no painel. Meia noite e vinte e cinco. Como sempre que venho até aqui, esperei minha filha estar dormindo há pelo menos duas horas para ter certeza de que ela não acordaria sem que eu estivesse em casa.

Desço da SUV preta e enfio as chaves no bolso enquanto caminho até o hall de elevadores. O chão liso do estacionamento torna meus passos barulhentos até que eu alcance e aperte o botão de chamada. Enfio as mãos nos bolsos do jeans, tamborilo os dedos sobre as coxas, vestidas pelo tecido.

Meu corpo desperta para aquilo que ele já sabe que o está esperando. Memória muscular, afetiva ou que quer que seja. Não espero quase nada e as portas do elevador se abrem silenciosamente.

Entro, posiciono meu dedo no leitor de digitais e a caixa metálica dispara para cima, sabendo que só deve parar na cobertura. Assim que as portas se abrem novamente, o cheiro familiar me atinge em cheio e eu inspiro uma lufada profunda. Após mais uma leitura de digital, entro no apartamento que venho mantendo há quase cinco anos.

O celular vibra no meu bolso e eu o puxo, conferindo a mensagem que chegou.

Daniel: Cheguei.

Isso é o que eu chamo de timing perfeito, mas Daniel nunca decepciona quando o assunto é sexo. O empresário está sempre disposto, pontual e o mais importante, entende que qualquer encontro comigo é o que é, sexo. Por isso, seu nome é um dos poucos que está na minha lista de contatos em caráter permanente. Uma pena ele morar no exterior, ou poderíamos fazer disso uma coisa fixa.

Seria tão mais fácil. A verdade é que há algum tempo foder se tornou nada além de uma necessidade fisiológica para mim. Faço, porque se eu não fizer, explodo. Mas é isso. A emoção da conquista, do desejo, isso eu nunca mais senti.

Hugo: Timing perfeito. Acabei de entrar.

Respondo a mensagem e enfio o celular no bolso outra vez antes de ir até o bar, na lateral da sala, e servir dois copos de uísque, um puro para mim e o outro com gelo, para ele. Não demora para que a porta do apartamento seja aberta e o homem de cabelos escuros e curtos passe seu corpo por ela.

Daniel se vira para fechar a porta e eu deixo meus olhos percorrerem. Quando ele se vira para mim, continuo minha exploração silenciosa, passo pelo abdômen e continuo descendo o olhar até as coxas grossas.

— Sentiu minha falta, Hugo? — pergunta com um sorriso sensual.

— Sempre — confirmo, caminhando em sua direção com um copo em cada mão.

— Mentiroso — acusa e comeca a tira a roupa, revelando o corpo completamente nu por baixo dela.

Como eu disse, nunca decepciona.

*** PEDRO FERNANDES ***

Puxo uma inspiração profunda, inflando o peito com muito mais ar do que realmente preciso e, depois de segurá-lo por alguns instantes, expiro com força. Um grito agudo e infantil me traz de volta ao presente, cumprindo seu papel.

Foi esse o motivo de eu vir até aqui, em primeiro lugar. Os pequenos correndo em torno dos brinquedos da praça me fazem sorrir. A imagem delas é uma das poucas coisas, talvez a única coisa, capaz de me dar algum alívio em dias como hoje.

O vento morno do meio do outono balança meus cabelos, soprando alguns fios escuros na frente do meu rosto e eu passo a mão sobre eles, prendendo uma mecha.

— Sabia que ia te encontrar aqui! — A voz impetuosa aumenta meu sorriso e eu sequer me viro em sua direção. Melissa senta ao meu lado no banco da praça, de frente para o prédio do nosso apartamento, e engancha seu braço no meu. — Sabe? Se você fosse um homem de meia idade, já teriam chamado a polícia há muito tempo e você teria que dar explicações sobre esse seu hábito estranho de observar crianças numa praça.

— Então é uma coisa boa que eu seja um homem de vinte e três anos e um metro e meio de altura, certo?

— E que tenha cara de criança também — acrescenta, balançando a cabeça em concordância consigo mesma. — Só pra garantir. Qualquer um que olhe de longe acha que você é só mais um entre tantos.

— Vai plantar batatas, Melissa! — Bufo e ela gargalha. Alguns fios dos seus cabelos ruivos fogem do coque mal feito no alto da sua cabeça. Estreito meus olhos para o rosto sardento da minha amiga, seus olhos verdes tem ruguinhas nos cantos, tão sorridentes quanto os lábios.

Mel não sabe sorrir só com uma parte do corpo, tudo nela se move, desde os olhos mais expressivos que já vi na vida até as pernas e os pés. Foi o que chamou minha atenção nela em primeiro lugar, no primeiro dia de aula da faculdade, há seis anos. Isso e o quão expansiva Mel é. Nunca achei que uma única pessoa poderia ocupar tanto espaço até conhecer Melissa.

— Viu só? Você até fala como um! Que adulto diz coisas como “vai plantar batatas!”?! Vamos lá. — Ela vira o rosto para mim, obrigando-me a fazer o mesmo e nos encaramos. Sua cabeça é levemente inclinada antes de sua boca voltar a falar, agora sussurrando. — Diz pra eu ir me foder! Você consegue! Eu acredito no seu potencial! — estimula.

Um revirar de olhos e um tremer desdenhoso de lábios são minha resposta para o pedido descabido. A criatura insiste em encher minha paciência, mas nem é como se eu não falasse palavrões, eu só não tenho a boca de um caminhoneiro, como ela. Viro o rosto e o concentro novamente na praça diante de nós.

— Você veio aqui pra isso? Torrar minha paciência pelo meu vocabulário?

— Não. Eu vim aqui perguntar se você tem certeza que não quer ir à Campos comigo.

— Não posso. Hoje à noite tem a festa de aniversário da minha aluna, esqueceu? — E me lembrar dela é mais uma das coisas capazes de colocar um sorriso em meu rosto no dia de hoje: Beatrice Maldonado.

A menina não parou de falar sobre o seu aniversário a semana inteira. Sua festa será da Barbie e de carrinhos, e seu tio Breno lhe prometeu um presente muito legal. Uma apreensão estranha, instalada em meu peito desde que acordei, aumenta seu aperto, e eu franzo o cenho. Será que aconteceu alguma coisa com a minha avó? Não a vejo desde seu aniversário, dez dias atrás.

Balanço a cabeça, afastando o pensamento. Notícia ruim chega rápido. O aperto tem a ver com a natureza do dia de hoje, é isso. Minha vontade é de ficar na cama, quietinho, mas eu jamais deixaria de ir à festa de Beatrice. Eu prometi e, por alguma razão, sei que minha presença é importante para ela.

A menina perdeu a mãe cedo, sei disso porque cada funcionário do Instituto é provido com informações básicas sobre as crianças por quem é responsável para evitar possíveis desconfortos ou inconveniências.

Talvez o apego da menina aos professoras seja apenas um reflexo dessa carência, talvez seu apego maior a mim se dê pelo fato de eu ser o mais jovem, o que lhe dá mais abertura. Independente do motivo, ele existe e eu me recuso a decepcionar a menina. Mesmo porque, sendo honesto, ela se tornou tão importante para os meus dias quanto, de alguma maneira, eu me tornei para os dela.

— Não, mas achei que valia a tentativa. Não queria te deixar sozinho. Não durante esse fim de semana. — E aí está. O real motivo da sua abordagem não era o deboche, eu sabia, mas preocupação. De novo, desvio os olhos das crianças, dos brinquedos e da areia ao nosso redor e olho para Melissa.

— Eu estou bem — afirmo e, talvez, outra pessoa pudesse acreditar, mas não Melissa. Ela não é apenas minha colega de apartamento, é minha melhor amiga, mesmo que a maioria das pessoas sejam incapazes de compreender como gênios tão diferentes podem se dar tão bem um com o outro. Seu olhar se torna profundo e sereno, antes de mudar para acusador.

— Você sabe que não precisa mentir pra mim, não sabe?

— Eu não estou mentindo.

— Fingir até ser verdade ainda é uma maneira de mentir, Pedro — declara, e eu aceno sutilmente antes de voltar a olhar para frente e encostar a cabeça em seu ombro. Mel solta um longo suspiro, quase como se estivesse resignada. — Tudo bem, já que você insiste, eu vou a tal festa com você.

A velocidade com que levanto a cabeça e me viro para ela quase me causa uma torção no pescoço. Com uma sobrancelha arqueada, olho para Melissa que tem sua atenção presa às unhas longas e pintadas de vermelho, fingindo-se de sonsa.

— Você sabe que é uma festa infantil, certo? — pergunto, só para confirmar. Ela estala a língua e me lança um olhar condescendente.

— Por que essa cara? Eu sou perfeitamente capaz de ficar no mesmo ambiente que algumas crianças! — defende-se antes que eu tenha a chance de fazer qualquer acusação porque não, ela não é.

Melissa não sabe lidar com crianças. Não é que minha amiga não goste dos pequenos, ela é apenas naturalmente impaciente e não sente qualquer prazer na interação com pessoas que tenham menos de quinze anos de idade. A combinação dessas duas características torna a simples ideia de Melissa, em uma festa infantil, uma realidade potencialmente desastrosa.

— Eu preciso te lembrar do que aconteceu quando o filho do vizinho do terceiro andar estava jogando bola dentro do apartamento? Porque pra mim, parece que foi ontem! — Ergo as sobrancelhas em desafio antes de fingir surpresa. — Oh, espera! Foi mesmo! Você bateu na porta do homem como se a criança tivesse arremessado tomates na sua direção quando a única coisa que ela fez foi jogar basquete dentro do próprio quarto.

— Ele nem pediu desculpas!

— Você é uma velha rabugenta de vinte e cinco anos, Melissa! Pelo amor de Deus! O menino tem dez anos. Na porta da vizinha do quarto andar que transa escandalosamente toda noite você não vai bater — acuso, e ela sequer tem a decência de parecer envergonhada.

— Claro que não, se eu tivesse que reclamar com ela seria por inveja, não por me sentir incomodada. — A resposta honesta demais me arranca uma gargalhada. — Como é que a gente chegou nesse assunto? — A sonsa ataca novamente e eu expulso o ar por entre os dentes. Não importa que eu conviva com Melissa há anos, sua cara de pau nunca deixa de me surpreender.

— Com você me dizendo que iria à festa comigo? — pergunto e ela balança a cabeça, confirmando, como se só agora tivesse se lembrado mesmo que eu tenha certeza de que Melissa nunca realmente esqueceu. Bufo, antes de continuar. — E isso nem é possível, eu só tenho um convite.

— Então por que nós estamos falando sobre isso? — Pisco os olhos e passo a língua sobre os lábios.

— Melissa, você bebeu?

— Não. E você?

— Ah, pelo amor de Deus! — Me levanto do banco e ergo as mãos espalmadas na direção dela. — Vamos! Eu preciso me arrumar!

**************

— Eu realmente não sei como você tem paciência pra essas coisas. — Sentada sobre a minha cama, com as pernas esticadas para frente e os braços para trás, Melissa resmunga alto para que eu consiga ouví-la de dentro do banheiro.

Não preciso vê-la para saber o que são “as coisas” às quais ela se refere: os recortes de bichinhos em emborrachado que eu comecei a fazer algumas noites atrás. Melissa nem mesmo se deu ao trabalho de usar palavras diferentes das que usou naquele dia.

— Você está começando a ficar repetitiva, Mel.

— E eu não acho que um dia vamos parar de falar sobre isso, a menos, é claro, que você crie juízo e admita que isso é um saco, mas eu não acho que vá acontecer. — Mesmo que eu não a esteja vendo, tenho certeza de que ela deu de ombros antes de estalar a língua. — Promete que não vai passar o fim de semana inteiro recortando bichinhos emborrachados?

— Só faço promessas que posso cumprir. É terapêutico — afirmo e passo o pente nos cabelos uma última vez antes de conferir minha imagem no espelho. Sorrio ao gostar do que vejo.

— Sabe por que chamam de dia inútil, Pedro? — ela pergunta e eu ouço a cama ranger, sabendo imediatamente que minha amiga soltou o corpo sobre os meus lençóis.

— Ninguém chama de dia inútil, só você — respondo alisando uma última vez a roupa que Mel me obrigou a usar. De acordo com ela, a cor vinho combina comigo e a roupa tem o equilíbrio perfeito entre casualidade e elegância, “Só para o caso de eu tropeçar em um milionário gay gostoso e solteiro.”

Essas palavras me fizeram gargalhar. Meus alunos são filhos de pessoas influentes e consideravelmente abastadas? Sim. O IABE formou vários dos nossos políticos e gênios das mais diversas indústrias? Também! Encontrarei vários pais, irmãos, parentes e outras pessoas próximas dos meus alunos por lá? Com certeza. Mas ainda que eu tropeçasse em um milionário, dificilmente ele seria gostoso, solteiro e capaz de manter minha atenção por mais de cinco minutos.

Conheci alguns milionários ao longo da vida. Alguns em formação, durante a minha vida escolar, já que minha avó sempre fez questão de que eu estudasse nos melhores colégios que o dinheiro pode pagar, mais caros até mesmo que o IABE, cujas mensalidades custam o valor de um carro por ano. E conheci também homens feitos e ricos o suficiente para fazer com que o dono do Mcdonald's pareça o dono de uma barraca de feira. Nenhum deles chegava nem perto de reunir as três características ao mesmo tempo: gostoso, solteiro e interessante. Mel está lendo muitos livros de romance.

— Me diga, sábio professor. — Seu tom escorre sarcasmo. — Qual é o antônimo de útil? — pergunta, e eu reviro os olhos mesmo que ainda estejamos separadas por uma parede e por isso ela não vá me ver.

— Não é porque a semana tem cinco dias úteis que os dois que sobram são chamados de inúteis.

— Uhum, tá — concorda sem qualquer convicção e deixa isso claro pela economia de palavras. Melissa nunca economiza nada de maneira voluntária. — Se os dias não são úteis, só podem ser inúteis! Se chamam assim porque deveriam ser dias de descanso, não de trabalho!

— Eu estou descansando. Veja só, é sábado e eu estou prestes a ir em uma festa! — argumento, guardando a nécessaire de maquiagem no armário embaixo da pia.

— Infantil, Pedro! Prestes a ir a uma festa infantil! — ela resmunga e eu saio do banheiro.

Paro em frente à minha própria cama e faço várias poses bobas, imitando um ensaio fotográfico. Melissa se apressa em sentar sobre o colchão outra vez, pegar sua câmera imaginária e disparar um milhão de flashes em minha direção.

— Mas eu estou pronto pra tropeçar e cair sentado no colo de um milionário! — brinco e rio do olhar no rosto da minha amiga, que aliado às suas próximas palavras, faz eu me perguntar se Melissa realmente acredita no que está dizendo.

— Sim, você está! Não se atreva a voltar pra casa sem o nome de pelo menos um na boca! — A exigência me arranca uma gargalhada de sacudir os ombros e jogar a cabeça para trás.

— Eu juro que, às vezes, Melissa, eu queria ser um neurônio seu.


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Conto maravilhoso sensível e gostoso de ler

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