Já era tarde da noite quando Clara empurrou a porta de casa e entrou em silêncio, os passos leves e inaudíveis. O ambiente escuro estava tomado por uma tranquilidade que contrastava com o turbilhão que agitava seus pensamentos.
Seu corpo ainda estava quente, a pele ainda vibrava com o toque de Vincent, como se as mãos dele ainda dançassem nela. Ela fechou os olhos por um instante, inspirando fundo, mas o ar parecia denso, carregado de algo que ela não sabia nomear, mas que queimava sob sua pele. Seus dedos roçaram os próprios lábios, ainda umedecidos pelos beijos que haviam trocado. Nunca havia sentido aquilo antes, aquele desejo, aquela fome misturada com uma sensação de perigo e excitação. Ela abriu os olhos, sacudindo a cabeça para afastar os pensamentos. Precisava tomar um banho, relaxar, organizar as próprias emoções antes de tentar dormir.
Sem acender as luzes, Clara caminhou pelo corredor e entrou no banheiro, acendendo apenas a arandela ao lado do espelho. O reflexo que a encarava de volta era diferente, os olhos brilhando com algo que ela não conseguia decifrar completamente.
A água quente começou a escorrer por sua pele assim que Clara entrou no chuveiro, seus ombros relaxando sob o calor que envolvia cada curva de seu corpo. Mas sua mente não encontrava descanso. Os pensamentos a levavam de volta ao parque, à maneira como Vincent a segurou pela cintura, ao calor do corpo dele pressionado contra o dela, à respiração densa misturada ao ar frio da noite.
A forma como ele tocou sua pele, como a explorou com calma e firmeza, como seus dedos a fizeram arder de um jeito novo. Ela mordeu o lábio, sentindo uma pontada de frustração e desejo não saciado.
"E se eu não tivesse parado?"
A pergunta pairou em sua mente, perigosa e tentadora. Seu próprio toque foi inconsciente, os dedos deslizando pela pele molhada, explorando os caminhos que ele poderia ter percorrido se não tivesse parado.
Clara arqueou suavemente, os olhos fechando-se ao imaginar as mãos de Vincent sobre ela, a boca dele mapeando cada centímetro de sua pele. A respiração quente em sua nuca. O som rouco da voz dele ao sussurrar seu nome. O desejo cresceu dentro dela, tomando-a por completo enquanto seu corpo reagia à lembrança. O limite entre memória e realidade se desfez. Os bicos dos pequenos seios se eriçaram como duas pequenas framboesas. Seu sexo inchado recebiam satisfeitos os toques delicados de seus dedos finos. E então, no ápice do momento, seu nome escapou em um suspiro.
— Vincent — murmurou.
O corpo de Clara relaxou sob o fluxo contínuo da água, o calor do banho misturando-se ao calor interno que ainda pulsava dentro dela. Mas, mesmo enquanto seu peito subia e descia em um ritmo mais lento, sua mente não estava em paz.
Ela se encostou na superfície fria do azulejo, sentindo o contraste da temperatura em sua pele.
"O que eu estou fazendo?", pensou. Ela nunca havia sentido algo assim, desejado alguém daquela forma, tão intensa, tão visceral. Mas, ao mesmo tempo, não era só desejo. Havia algo em Vincent que a atraía de um jeito perigoso e irresistível. Ele era o oposto de tudo que ela sempre achou que queria: sombrio, indomável, misterioso. E ainda assim, ela não conseguia afastá-lo. "Como isso aconteceu?".
Com um suspiro cansado, Clara desligou o chuveiro e pegou a toalha, secando-se com gestos lentos e reflexivos. Vestiu uma camisola leve e seguiu para o quarto, os cabelos ainda úmidos escorrendo pelas costas. Deitou-se na cama e puxou o cobertor sobre o corpo, mas o calor ainda permanecia ali, pulsando sob sua pele.
Ela tentou comparar Vincent a Leandro, seu ex-namorado. Leandro era tudo que Vincent não era. Educado, previsível, seguro. O tipo de homem que a família dela aprovava, que era fácil de entender, fácil de amar, mas, ao lembrar-se dele, não sentiu nada. Nenhuma fagulha. Nenhum arrepio. Nenhum desejo ardente.
"Por que com Vincent é diferente?"
Leandro nunca despertou nela aquela necessidade de mais, aquela fome de explorar o desconhecido, aquele desejo de se entregar ao momento sem pensar nas consequências. Vincent, por outro lado… Ele era como fogo, brilhante, quente, perigoso. E ela estava começando a gostar da sensação de se queimar.
Clara virou-se na cama, abraçando o travesseiro e fechando os olhos, tentando acalmar sua mente, mas a verdade já havia sido dita, mesmo que silenciosamente. Ela estava apaixonada por Vincent e aquilo a assustava.
Porque sabia que ele era problemático, mas mesmo assim… ela não queria se afastar.
**********
A madrugada avançava lentamente quando Vincent empurrou a porta do apartamento e entrou, jogando as chaves sobre a mesa da cozinha. O silêncio o envolveu como um manto pesado, Luna ainda não havia voltado do trabalho, deixando-o sozinho com seus pensamentos.
Ele passou uma mão pelos cabelos úmidos de garoa, a mente ainda presa ao que acontecera horas antes. O calor do corpo de Clara ainda estava em sua pele, como uma marca invisível que ele não conseguia apagar. Ele caminhou até a geladeira e pegou uma cerveja, mas nem se preocupou em beber. O líquido gelado não conseguiria acalmar a febre que ardia dentro dele.
Soltou um suspiro cansado e recostou-se no batente da porta da cozinha, os olhos fixos na escuridão da sala.
"O que diabos ela tá fazendo comigo?"
Era uma pergunta que não saía de sua cabeça.
Desde que conhecera Clara, tudo parecia mais confuso, mais intenso, e ele não sabia como lidar com isso. Ela era o oposto de tudo que ele conhecia: Pura, gentil, otimista. Enquanto ele… Ele era feito de sombras e escuridão.
Vincent terminou a cerveja em poucos goles e seguiu para o banheiro. Precisava de um banho, algo que aliviasse a tensão acumulada em seus músculos.
O vapor quente logo preencheu o espaço pequeno, enevoando o espelho enquanto a água escorria por seu corpo. Mas, em vez de acalmá-lo, só fez reacender as memórias do que poderia ter acontecido naquela noite. A sensação suave da pele macia de Clara ainda persistia na palma de suas mãos. Ao mesmo tempo que estava cheio de incerteza, como se ela estivesse aprendendo a senti-lo da mesma forma que ele tentava compreendê-la. Vincent fechou os olhos, encostando a testa contra a parede fria do box.
Lembrou-se da forma como ela arquejou levemente quando ele deslizou os dedos sob sua camisa, da maneira como seu corpo se moldou ao dele, do calor compartilhado que só aumentava a cada toque. Vincent prendeu a respiração quando sua mente trouxe de volta o toque dela, hesitante, mas carregado de necessidade.
E se ela não tivesse parado?
A pergunta ecoou dentro dele como um desafio cruel. Seu corpo reagiu ao pensamento, e seus dedos se apertaram contra o músculo rígido, como se estivesse tentando conter algo selvagem dentro de si. Ele podia tê-la tomado ali. Podia ter mostrado a ela tudo o que o desejo clamava.
A água escorria por seu peito, deslizando por cada linha de seu corpo tenso. Sua respiração tornou-se irregular conforme ele explorava o próprio prazer, imaginando o que poderia ter sido se Clara tivesse se entregado por completo. Então, um gemido rouco escapou de seus lábios, os jatos atingindo a parede e misturando-se à água quente que levava tudo pelo ralo.
Mas a satisfação foi fugaz.
Vincent apoiou as mãos contra o azulejo frio, sentindo o peito subir e descer em um ritmo acelerado.
O prazer veio acompanhado de uma angústia incômoda.
Porque, ao contrário das outras vezes, ele não queria apenas saciar um desejo passageiro.
Ela o havia interrompido e Vincent a respeitou. Não porque não queria, mas porque queria demais.
Por mais que isso tivesse sido um choque para Vincent, ele não se sentiu frustrado, pelo contrário. O fato de ela querer que fosse especial, que tivesse um significado, que fosse no momento certo… Isso o afetou mais do que qualquer outra coisa, porque nunca ninguém havia esperado nada dele além do imediato. Nunca ninguém havia desejado algo dele além do físico. Mas Clara queria algo além do desejo e isso o fazia sentir algo diferente de tudo que já havia sentido.
Vincent desligou o chuveiro e passou a toalha pelo corpo, o vapor ainda girando ao seu redor. Mas o fogo interno continuava queimando. Vestiu uma calça de moletom e seguiu para o quarto, sentando-se na beirada da cama, o rosto escondido entre as mãos.
"Ela é boa demais pra mim."
Esse pensamento vinha como um veneno sempre que ele tentava entender o que sentia por Clara. Ela não fazia parte de seu mundo. Ela não conhecia as sombras que o perseguiam, as cicatrizes que carregava, as coisas que havia feito. Se ela soubesse… se ela visse o verdadeiro Vincent… ela fugiria e talvez ele devesse deixá-la fugir antes que fosse tarde demais.
Mas então, como se sua mente insistisse em contrariá-lo, a imagem de Clara sorrindo apareceu diante de seus olhos fechados. O brilho dela, a esperança que carregava, o jeito como olhava para ele como se visse algo além das sombras.
Vincent respirou fundo, sentindo o coração martelar contra o peito.
"E se eu não quisesse que ela fosse embora?"
O pensamento o atingiu como um golpe inesperado. Por um momento, ele não soube o que fazer com isso. Ele, que sempre viveu no controle, se sentia completamente sem direção. E isso o aterrorizava.
Vincent se deitou na cama e encarou o teto. O silêncio do apartamento parecia mais opressor do que nunca, e ele se revirou algumas vezes, tentando afastar o turbilhão de pensamentos, mas o sono não veio, porque, pela primeira vez em anos, ele desejava algo que não sabia como possuir. E esse desejo ia muito além do físico. Ele queria Clara, mas, acima de tudo… queria ser digno dela. E talvez esse fosse seu maior dilema.
**********
O sol mal havia despontado no horizonte quando Vincent abriu os olhos, sentindo o corpo ainda pesado pelo sono inquieto da noite anterior. O apartamento de Luna estava mergulhado em um silêncio denso, apenas o som distante do tráfego na cidade rompendo a tranquilidade do quarto.
Ele piscou algumas vezes, ajustando-se à luz fraca que filtrava pelas cortinas, e então sentiu o calor de um corpo próximo ao seu. Luna.
Ela dormia tranquilamente ao seu lado, o lençol escorregando levemente por sua pele nua, revelando as curvas tentadoras que sempre despertavam nele algo primitivo. Por um momento, ele simplesmente a observou. A forma como seu peito subia e descia em uma respiração ritmada, os lábios levemente entreabertos, as madeixas escuras espalhadas pelo travesseiro. Luna sempre tivera essa capacidade de parecer completamente relaxada, como se nada no mundo pudesse perturbá-la.
Mas Vincent não conseguia compartilhar daquela mesma paz. Não depois da noite anterior. A imagem de Clara surgiu em sua mente como uma sombra persistente. Ele se lembrou do modo como ela o olhou, como se quisesse enxergar além de sua armadura. Ela era tão diferente de Luna. Enquanto Luna era o fogo da luxúria, Clara era o brilho suave do sol da manhã que aquecia sem queimar.
E Vincent estava preso entre esses dois mundos, sem saber qual direção tomar. Ele suspirou pesadamente e passou uma mão pelo rosto, afastando-se da cama sem fazer barulho. Precisava sair dali. Precisava arejar a mente antes que seus pensamentos o consumissem.
Diante do armário, se deparou-se com um problema: a falta de roupas. Sua mochila, que carregava apenas algumas peças, não seria suficiente para continuar vivendo com Luna. Afinal, mesmo tentando ignorar, ele sabia que não voltaria a morar na casa do pai de novo, mas precisava voltar uma última vez.
O portão da casa não estava trancado.
Vincent empurrou-o sem dificuldade, ouvindo o rangido familiar das dobradiças enferrujadas. A casa estava silenciosa. Não era incomum que Rudolph estivesse dormindo a essa hora, ainda se recuperando de alguma ressaca, mas algo na quietude parecia errada. Talvez fosse a ausência do cheiro de cigarro impregnando o ar. Ou talvez fosse o fato de que, pela primeira vez em muito tempo, ele não sentia a presença do pai ali dentro.
Mesmo assim, Vincent ignorou o desconforto e seguiu direto para o quarto onde guardava suas coisas, pegando algumas roupas que ainda estavam espalhadas pelo armário. Jogou tudo na mochila, ajustou-a sobre o ombro e então parou diante da porta do quarto de Rudolph.
A intuição o incomodava. Hesitou. Podia simplesmente ir embora e nunca olhar para trás, mas algo dentro dele o obrigou a olhar. Com um movimento quase involuntário, ele empurrou a porta entreaberta e espiou para dentro.
E então, o tempo parou.
Rudolph estava deitado na cama, o corpo imóvel sob os lençois embolados. Por um segundo, Vincent pensou que ele apenas dormia, mas então, notou a ausência de movimento no peito do pai.
Não havia nenhuma respiração. Nenhum som. Nenhum suspiro. O coração de Vincent martelou no peito. Ele deu um passo para dentro do quarto. E outro. Até que finalmente se colocou ao lado da cama.
A pele de Rudolph estava acinzentada, fria. O olhar de Vincent percorreu a mesinha de cabeceira, onde havia um copo de vidro quase vazio ao lado de uma garrafa de cachaça pela metade.
— Vater (Pai).
Nenhuma resposta.
O corpo estava rígido.
Vincent recuou um passo, o ar sendo expulso de seus pulmões como se tivesse levado um golpe.
— Vater.
Nada.
E foi ali, naquele instante, que ele soube. Rudolph Weiser estava morto.
A respiração de Vincent ficou pesada, o peito apertado por um turbilhão de emoções contraditórias.
Ele deveria sentir alívio? Deveria sentir raiva? Ou apenas um vazio cruel, como se uma parte dele tivesse desaparecido junto com o homem que agora jazia imóvel à sua frente?
"Isso é culpa minha?"
A pergunta explodiu em sua mente antes que ele pudesse impedir.
Ele o havia abandonado. Havia dito que nunca mais voltaria e agora, Rudolph nunca teria a chance de se redimir. Nem ele.
As palavras cruéis que haviam trocado na última briga ainda ecoavam em sua mente, como uma maldição impossível de ser apagada.
"Você carrega o mesmo sangue sujo."
Vincent fechou os olhos, engolindo em seco.
"Será que eu realmente sou igual a ele?"
A sombra desse pensamento o perseguiu enquanto se afastava lentamente da cama. Seus dedos tremiam ao puxar a mochila sobre os ombros. Seu olhar voltou uma última vez para o pai, um homem quebrado, vencido pela própria dor.
E então, sem mais nenhuma palavra, Vincent virou-se e saiu.
Os passos de Vincent se arrastaram pela casa enquanto ele seguia para a sala. O silêncio agora parecia mais opressor do que nunca. Ele parou diante do telefone fixo pendurado na parede. O fio enrolado balançava levemente quando ele o puxou do suporte.
Seus dedos marcaram os números da emergência automaticamente.
O telefone chamou três vezes antes de uma voz responder do outro lado da linha.
**********
O céu estava coberto por nuvens densas e pesadas naquela manhã abafada. O ar era espesso, carregado de umidade, como se o próprio clima refletisse o peso invisível da ocasião.
Vincent permaneceu em silêncio, parado ao lado do caixão que descia lentamente à cova aberta no pequeno cemitério de Blumenau. O cheiro de terra úmida pairava no ar, misturado ao perfume discreto do crisântemo.
Ao seu lado, Clara permaneceu em silêncio, seu olhar atento a cada movimento dele.
Desde que soubera da morte de Rudolph, ela ficou por perto, mas sem pressioná-lo a falar sobre o que sentia. Clara não exigia que ele desse nomes ao que estava sentindo.
Havia poucas pessoas ali. Além do padre que murmurava as últimas palavras da cerimônia, estavam alguns conhecidos do bairro, vizinhos que, em algum momento, cruzaram com Rudolph nas ruas ou nos bares que frequentava. Nenhum deles parecia especialmente abalado, alguns estavam ali por consideração, outros por mera curiosidade.
Vincent não esperava mais do que isso.
Ele não chorou. Não sentiu vontade de chorar. Apenas observou enquanto a pá de terra começava a cobrir o que restava de seu pai, e algo dentro dele pareceu se fechar de vez.
Talvez fosse isso. Talvez essa fosse a única coisa que a morte realmente fazia: encerrava histórias inacabadas, deixando apenas perguntas sem respostas. E ele não teria nenhuma.
Após o enterro, as poucas pessoas que compareceram se dispersaram rapidamente. Algumas lhe deram tapinhas no ombro, dizendo palavras que Vincent ignorou.
Ele não precisava de condolências.
Precisava de uma resposta para o que viria agora.
Foi quando notou um homem alto se aproximando. O terno escuro contrastava com os fios grisalhos bem penteados, e seus passos eram firmes, calculados.
Agnaldo Seiwald, pai de Clara. Ele já ouvia o nome de Vincent com frequência em sua casa nos últimos dias e agora estava finalmente diante dele, um jovem que parecia muito mais velho do que alguém poderia supor.
— Meus sentimentos, rapaz — Agnaldo disse, sua voz calma, mas carregada de autoridade.
Vincent apenas assentiu, sem responder.
— Sei que esse não é o melhor momento para falar sobre isso, mas acredito que tu precisas de ajuda com os próximos passos.
Vincent franziu o cenho.
— Que próximos passos?
O advogado suspirou.
— Teu pai deixou bens para trás, a casa, a charcutaria. Como único herdeiro, tu vais precisar resolver o inventário.
Vincent não havia pensado nisso. Agnaldo percebeu a hesitação no rosto do garoto e continuou:
— Além disso, tu tens apenas 16 anos. Para lidar com tudo isso legalmente, vais precisar da tua emancipação.
Vincent cruzou os braços, desconfiado.
— E por que você se importa?
Agnaldo não pareceu surpreso com a pergunta.
— Porque sei o que é perder alguém e ter que carregar o peso de um legado — ele lançou um olhar rápido para Clara, que observava tudo em silêncio — E porque minha filha acredita em ti e isso, para mim, já é o suficiente.
Vincent desviou o olhar, incomodado.
Clara sempre via algo nele que ele próprio não enxergava e agora, o pai dela parecia compartilhar dessa visão.
Agnaldo puxou um cartão do bolso interno do paletó e o entregou a Vincent.
— Me procure no meu escritório nos próximos dias. Vamos resolver isso.
Vincent olhou para o pedaço de papel entre seus dedos. Não queria depender de ninguém, mas também sabia que não conseguiria resolver aquilo sozinho. Finalmente, guardou o cartão no bolso.
Agnaldo deu um leve aceno com a cabeça e se afastou.
Vincent sentiu o peso da responsabilidade recair sobre ele. Ele queria ser independente, mas estava preparado para isso? Ao seu lado, Clara tocou seu braço suavemente.
— Tu não precisa fazer isso sozinho, Vincent.
Ele soltou um riso curto e sem humor.
— Desde quando eu precisei de alguém?
Clara o olhou nos olhos.
— Desde sempre.
Vincent não respondeu. Ele apenas ficou ali, olhando para a lápide de Rudolph, sentindo que, naquele momento, seu passado estava sendo enterrado junto com ele. Agora, só restava descobrir o que faria com seu futuro.
**********
A porta rangeu quando Vincent a empurrou, revelando a casa escura e silenciosa. Pela primeira vez, não havia o cheiro de cigarro impregnando o ar, nem o barulho de uma TV ligada no volume alto demais. O lugar parecia maior sem a presença de Rudolph, ou talvez fosse apenas o vazio que crescia dentro dele.
Ele deu alguns passos para dentro e jogou a mochila no sofá. Os móveis estavam no mesmo lugar, mas a casa já não parecia a mesma. Antes, ela pertencia a seu pai. Agora, pertencia a ele. O que isso significava? Que agora ele tinha um lar? Ou que estava preso às mesmas paredes que sempre odiou?
Vincent percorreu o olhar pela sala, enxergando marcas de copos e bitucas de cigarro esquecidas sobre a mesa, embalagens amassadas de comida, um cheiro de umidade vindo do corredor. Era como se as sombras de Rudolph ainda estivessem ali, pairando sobre tudo.
Ele sentiu uma súbita vontade de sair, mas para onde? Se ele quisesse construir algo para si, precisava começar de algum lugar. E aquele lugar, gostasse ou não, era ali.
A batida na porta o tirou dos pensamentos.
Vincent abriu e encontrou Luna encostada no batente, um cigarro equilibrado entre os dedos. Ela vestia um top justo e um short curto, e o olhar dela percorreu Vincent de cima a baixo antes de erguer uma sobrancelha.
— Então, este é teu reino agora?
Vincent bufou, cruzando os braços.
— Se dá pra chamar assim.
Luna tragou o cigarro e entrou sem ser convidada. Ela girou o olhar pelo ambiente, franzindo o nariz ao ver a bagunça.
— Que merda, hein? Esse lugar precisa de um exorcismo.
Vincent soltou um riso curto.
— Ou de um incêndio.
Luna olhou para ele com um meio sorriso.
— Ou a gente pode começar devagar. Uma reforma talvez.
Vincent arqueou uma sobrancelha.
— Tá sugerindo que eu vire decorador agora?
— Tô sugerindo que tu transforme essa casa num lugar onde tu queira viver.
Ele nunca pensou em "querer" viver ali. A casa sempre foi um inferno, e agora que pertencia a ele, o que mudava? Mas, ao mesmo tempo, ele não queria que aquele lugar continuasse sendo um túmulo do passado.
Luna se aproximou e deslizou os dedos pelo peito dele, encarando-o de perto.
— Olha, eu sei que tu não é do tipo que fica remoendo coisa velha, mas dá pra ver que isso aqui tá pesando.
Vincent prendeu a respiração, sentindo o calor do toque dela.
— E qual sua solução, Luna? Me distrair?
Ela sorriu de lado, os olhos brilhando em desafio.
— Se funcionar, por que não?
Depois de algumas horas conversando, Vincent percebeu que Luna tinha razão.
Se ele iria morar ali, então precisava fazer do lugar algo habitável. A charcutaria agora era dele. Se soubesse administrar direito, poderia fazer dinheiro suficiente para reformar a casa. Talvez pintar as paredes. Jogar fora aquele sofá velho. Trocar os móveis que carregavam lembranças demais. E então, quem sabe, ele poderia começar algo novo.
Luna estava jogada no sofá, olhando para ele com um sorriso preguiçoso.
— Gosto desse olhar.
Vincent arqueou a sobrancelha.
— Que olhar?
— O de quem tá deixando de fugir.
Ele ficou em silêncio por um momento.
Talvez ela estivesse certa. Pela primeira vez, Vincent não estava apenas sobrevivendo, estava começando a construir algo. E, dessa vez, seria do seu jeito.
AUTOR: Para questão de esclarecimento, a série só teve o título alterado, mas a história se mantém.