Miguel entrou devagar, os olhos vermelhos e inchados, a respiração descompassada como se tivesse corrido até ali. Ele mal conseguia falar, apenas murmurava um pedido de desculpas, sua voz trêmula carregada de desespero.
— Léo... me desculpa... — ele disse, engolindo em seco. — Eu não sabia pra onde ir...
Sem pensar, me aproximei dele, segurando seus ombros. Ele tremia.
— Miguel, o que aconteceu? Você está machucado? — perguntei, tentando entender o que estava se passando.
Ele não respondeu. Em vez disso, me abraçou, apertando meu corpo como se precisasse daquilo para não desmoronar.
Foi quando senti uma presença atrás de mim. Antes mesmo de olhar, já sabia quem era.
Gustavo se aproximou, sua mão firme pousando na minha cintura, um toque possessivo. Senti seu corpo rígido, a tensão transbordando.
— O que você está fazendo aqui, Miguel? — Gustavo perguntou, sua voz mais fria do que eu esperava.
Miguel hesitou, mas não se afastou de mim.
— Eu... eu precisava falar com o Léo... só com ele...
— Só com ele? — Gustavo repetiu, sua mão apertando um pouco mais minha cintura. — E não tinha mais ninguém no mundo pra pedir ajuda?
Miguel passou a mão pelo rosto, ainda tentando recuperar o fôlego.
— Eu só confio nele...
Gustavo riu, mas não havia humor nenhum em seu riso.
— Desde quando você visita o Léo na casa dele? — ele perguntou, sua voz carregada de ciúme. — Eu achei que esse contato tinha acabado na escola.
Senti meu peito apertar. Eu sabia que Gustavo ficaria assim.
— Gustavo... — comecei, tentando acalmar a situação.
— Responde, Léo — ele me interrompeu. — Desde quando vocês ainda se falam?
Suspirei, segurando em seu braço para que ele me olhasse.
— Gustavo, olha pra ele. Você acha que agora é hora disso? O Miguel claramente não está bem. Antes de qualquer coisa, ele é meu amigo.
O maxilar de Gustavo ficou tenso. Seus olhos estavam escuros, carregados de emoções conflitantes.
— Engraçado... porque eu não me lembro de ele ser só seu amigo... — Gustavo murmurou.
Miguel abaixou a cabeça, pressionando os dedos contra as têmporas, como se tudo aquilo só estivesse piorando seu estado.
— Eu não vim aqui pra isso... — ele sussurrou. — Eu só... eu só precisava de ajuda...
Olhei para Gustavo, implorando silenciosamente para que ele deixasse aquilo de lado por um momento. Ele bufou, desviando o olhar, mas pelo menos não disse mais nada.
Voltei minha atenção para Miguel.
— Tudo bem... você pode falar agora. O que aconteceu?
Ele respirou fundo, tentando conter mais um soluço.
— Eu... eu estou com medo, Léo... Muito medo...
Miguel continuava chorando, suas palavras vinham entrecortadas pelos soluços. Ele apertava os próprios braços como se tentasse se manter firme, mas era inútil.
— Eu... eu não queria... eu juro que não queria... — ele balbuciou. — Eu não sabia, Léo... eu não sabia...
Senti um aperto no peito.
— Não sabia o quê? — perguntei, sentindo um nó se formar na garganta.
Miguel tentou falar, mas o choro o impediu. Ele esfregou o rosto com as mãos, respirou fundo e engoliu em seco antes de continuar.
— Eu fui... fui numa clínica pra doar sangue... — Ele fez uma pausa, fechando os olhos com força. — E lá... eles pediram pra eu voltar... pra fazer um teste...
Meu coração começou a bater mais rápido.
— Que teste, Miguel?
Ele hesitou por um momento, mas então deixou escapar, quase como se não pudesse mais segurar aquilo dentro dele.
— Um teste de HIV...
Foi como se o mundo tivesse parado por um instante. O ar ao meu redor pareceu sumir.
— E... e o que deu? — perguntei, minha voz quase falhando.
Miguel abaixou a cabeça, o choro recomeçando com mais força.
— Deu positivo...
Minha respiração travou. Meus olhos imediatamente buscaram Gustavo, que me olhava de volta, sua expressão uma mistura de choque e fúria. Meu corpo ficou rígido, e então, sem perceber, lágrimas começaram a brotar nos meus olhos.
— Não... — murmurei, sentindo o pânico se espalhar dentro de mim.
Minhas mãos tremiam. Minha cabeça começou a girar, uma enxurrada de pensamentos e lembranças invadindo minha mente de uma vez só.
— Desde quando? — perguntei, tentando desesperadamente manter o controle. — Desde quando você sabe disso?
— Eu... eu descobri hoje... Mas eu não sei há quanto tempo... — Miguel disse, a voz falhando.
Engoli em seco, meu peito subindo e descendo rapidamente.
— Miguel... — forcei as palavras a saírem. — Você teve relação com outra pessoa depois de mim?
Ele hesitou, seus olhos evitando os meus. Isso já era resposta suficiente, mas mesmo assim eu precisava ouvir da boca dele.
— Fala, Miguel! — minha voz saiu mais alta do que eu pretendia.
Ele olhou para mim com os olhos cheios de culpa, sua expressão denunciando o que viria a seguir.
— Teve uma época... — ele começou, a voz embargada. — Antes da última vez que a gente ficou... quando você não me respondia mais... eu... eu acabei ficando com um cara de aplicativo...
Meu coração martelava dentro do peito. Eu senti meu estômago revirar.
— Você... você nem sabe quem ele é? — minha voz saiu fraca, sem força.
Miguel negou com a cabeça, seus olhos marejados.
— Eu não sabia, Léo... Eu juro que eu não sabia...
O silêncio foi cortado pelo som de Gustavo bufando. Quando olhei para ele, seu rosto estava vermelho de ódio, seus punhos cerrados.
Antes que eu pudesse reagir, Gustavo avançou, agarrando Miguel pelo colarinho e o empurrando contra a parede.
— O que o Léo tem a ver com essa merda toda, hein?! — ele rosnou, sua voz carregada de fúria.
Miguel arregalou os olhos, seu corpo tenso de medo.
— Gustavo! Para! — tentei intervir, mas ele não me ouviu.
— Você foi irresponsável pra caralho, Miguel! — Gustavo continuou, seus dedos apertando mais o tecido da camisa do outro. — Agora você aparece aqui, chorando, pedindo desculpa?!
Miguel soluçava, tentando falar, mas Gustavo não lhe dava espaço.
— Você colocou o Léo nessa merda! Você entende isso?!
Gustavo então o soltou com força, empurrando-o para longe. Miguel tropeçou para trás, o rosto tomado pela culpa e pelo desespero.
Eu não conseguia dizer nada. Meu corpo inteiro tremia.
Miguel respirou fundo, enxugando o rosto com as mãos antes de erguer a cabeça. Seus olhos vermelhos e marejados encontraram os de Gustavo, e então ele riu, um riso seco, sem humor.
— Sabe qual é a diferença entre a gente, Gustavo? — sua voz saiu carregada de ressentimento. — Eu fui homem o suficiente para vir aqui e contar a verdade para o Léo. Eu poderia ter ficado quieto, poderia ter fingido que nada aconteceu, mas não... Eu voltei. Eu encarei ele de frente, porque eu jamais ia deixá-lo sem saber de nada.
Gustavo cerrou os punhos, pronto para revidar, mas Miguel continuou, sua voz se elevando.
— Pode ser que o teste dele dê negativo. Pode ser que dê positivo. Eu não sei! Mas ele tem o direito de saber! Porque eu me importo com ele o suficiente para não deixá-lo no escuro. Diferente de você, Gustavo! — Miguel cuspiu as palavras, o ódio transbordando. — Você acha que tem alguma moral para me encarar assim? Para me segurar pelo colarinho e me jogar contra a parede? Quem você pensa que é?
Gustavo avançou um passo, mas Miguel não recuou.
— Eu vou te dizer quem você é — Miguel continuou, sua voz afiada como uma lâmina. — Você é um grande filho da puta. Um egoísta do caralho, que só pensa em si mesmo. O Léo passou por coisas horríveis, coisas que você nem imagina, e você? Você só piora tudo. Você acha que ele não consegue ser feliz com ninguém por quê? Porque você tá sempre no caminho! Porque você manipula ele, suga ele, destrói qualquer chance que ele tem de seguir em frente!
O rosto de Gustavo se contorceu em raiva, mas Miguel não parou.
— E não vem com esse papinho de merda, de “ah, eu sou um viciado, eu sou quebrado”... Que porra de desculpa esfarrapada é essa?! Você não passa de um fraco! Um fraco que usa essa droga de história para se esconder da própria covardia! Você se esconde atrás do seu vício porque é mais fácil do que admitir que você é um merda!
O silêncio pesou no ambiente. Eu estava completamente paralisado pelo medo.
Miguel deu um passo para trás, respirando fundo, tentando se recompor.
— Agora escuta bem, Gustavo — ele finalizou, sua voz mais baixa, mas ainda carregada de veneno. — Eu tô aqui pelo Léo. Só por ele. E você? Você só tá aqui por você mesmo. Como sempre.
Gustavo não respondeu. Seus olhos estavam escuros, cheios de ódio, mas também havia algo mais ali. Algo que ninguém conseguia nomear.
O silêncio se instalou entre os três, pesado como uma tempestade prestes a desabar até que minha própria voz ecoou pelo apartamento, cortando o ar carregado de tensão. Eu não aguentava mais. Gustavo e Miguel estavam prontos para se matar na minha frente, como se a minha vida fosse um troféu que eles podiam disputar no grito.
— Pelo amor de Deus, vocês dois! Vocês acham que isso aqui é o quê? Um ringue? Isso não é sobre o Gustavo ou sobre o Miguel! Isso é sobre algo muito maior!
O silêncio caiu sobre nós. Miguel ainda tremia, fungando, e Gustavo cerrava os dentes, os olhos transbordando ódio. Meu peito subia e descia rápido, ainda tomado pelo impacto da notícia.
Engoli em seco, tentando processar tudo, e me forcei a olhar para Miguel.
— Como é que você tá? — perguntei, minha voz saindo mais baixa agora. — Qual o próximo passo?
Vi Miguel inspirar fundo antes de abaixar a cabeça e levar a mão ao bolso do casaco. Ele puxou dois frascos e dois comprimidos embalados individualmente, segurando-os na palma da mão aberta.
— O próximo passo já está aqui. — Sua voz saiu embargada. — Pelo menos o SUS é muito bom... Eu já saí do posto com o remédio. Agora é manter o acompanhamento...
Olhei para aqueles frascos na mão dele, sentindo um aperto no peito. Era real. Não dava mais para fugir. Me aproximei devagar, estendi a mão e fiz com que ele se sentasse no sofá. Miguel não resistiu ao meu toque, apenas deixou que eu o conduzisse.
— Miguel, você sabe que hoje em dia as pessoas vivem normalmente com HIV, não sabe? — Falei, apertando a mão dele entre as minhas. — Não é mais como antes. O tratamento evoluiu muito. Com a medicação certa e o acompanhamento, você pode ter uma vida longa, saudável, e... e sem risco de transmitir o vírus se estiver indetectável.
Os olhos de Miguel se encheram de lágrimas outra vez.
— Eu sei... mas eu só conseguia pensar que precisava te contar. Que você precisava saber...
Ele fungou, desviando o olhar.
— Me desculpa, Léo... eu não queria te trazer esse problema, eu juro. — Sua voz era um fio. — Se você quiser, eu vou com você fazer os exames... Eu fiz o teste ontem, então posso te acompanhar...
Antes que eu pudesse responder, Gustavo soltou uma risada seca.
— Não precisa da sua porra de ajuda pra isso.
Miguel o encarou com os olhos marejados, mas, no segundo seguinte, virou-se para mim.
— Eu já vou embora... — Ele se levantou devagar, passando a mão pelo rosto molhado. Quando chegou perto da porta, parou por um momento e me olhou. — Léo... eu sinto muito. De coração.
Engoli em seco, incapaz de responder.
Ele hesitou, desviou o olhar para Gustavo e, em seguida, voltou para mim.
— E a minha proposta ainda está de pé. — Sua voz saiu trêmula. — Se um dia você quiser ser feliz com alguém... Eu largo tudo e mudo a minha vida por você. Porque eu te amo, Léo. Eu sempre te amei.
Aquelas palavras caíram como uma pedra dentro do meu peito. Gustavo estava parado ao meu lado, sem dizer nada, mas eu sentia o ódio pulsando nele.
Miguel se aproximou e, num último ato, me puxou para um abraço apertado. Fiquei imóvel, sentindo as lágrimas dele molharem meu ombro. Então, antes que eu pudesse reagir, ele soltou meu corpo, virou-se e saiu pela porta, sem olhar para trás.
A porta se fechou, e o som ecoou pelo apartamento como se fosse um trovão dentro da minha cabeça.
Miguel tinha ido embora. Mas as palavras dele ainda estavam aqui, presas no ar pesado da sala.
Eu inspirei fundo, tentando me recompor, mas Gustavo quebrou o silêncio com um soluço trêmulo.
— Por quê, Léo? — A voz dele saiu baixa, carregada de um peso que me fez estremecer. Quando olhei para ele, vi seus olhos cheios d’água, a mandíbula travada como se estivesse segurando o choro com todas as forças. — Por que você precisa de qualquer outro?
O peito dele subia e descia de forma irregular, como se estivesse lutando contra algo muito maior que ele.
— Você conhece o Miguel... — continuou, respirando com dificuldade. — Desde a época da escola, ele só te trouxe problemas. Só se meteu no meio da sua vida, do nosso relacionamento. Sempre foi assim!
— Gustavo... chega. Não é o momento. — Falei, cansado. Eu não tinha energia para mais uma discussão.
— Como não é o momento? — Ele riu, sem humor, e passou a mão pelo rosto. — Toda vez que você resolve ser feliz ele aparece. Toda vez, Léo! Parece que ele sabe exatamente quando entrar na sua vida e bagunçar tudo.
— Gustavo...
— E o pior de tudo é você sempre perdoando, não sei porque ainda mantém contato com esse cara!
Ele foi se exaltando, gesticulando, os olhos arregalados de frustração e raiva. Eu via seu peito se inflar a cada frase, a respiração cada vez mais acelerada.
— Gustavo, para com isso! — Exclamei, mas ele continuou.
— Você sempre coloca ele no meio do nosso relacionamento. Sempre! — O tom de voz dele subiu ainda mais. — E eu? Onde eu fico nisso tudo? Você pensa em mim? No que eu sinto?
Ele estava descontrolado, andando de um lado para o outro da sala. A luz fraca da cozinha que estava acesa desenhava sombras em seu rosto contorcido pela angústia. Eu fechei os olhos por um segundo, sentindo minha cabeça latejar.
Até que eu explodi.
— ME DEIXA PENSAR, QUE PORRA!
Minha própria voz ecoou pelas paredes. Gustavo parou no mesmo instante, me olhando como se eu tivesse acabado de socá-lo no peito.
O silêncio voltou, pesado e sufocante.
Por um momento, tudo o que se ouvia era nossa respiração descompassada.
— Apesar de tudo... o Miguel era a única pessoa que estava lá. – falei encarando-o.
Ele desviou o olhar, balançando a cabeça e depois respirou fundo, fechando os olhos por um momento. Quando voltou a falar, sua voz estava trêmula.
— Me desculpa. Eu só... eu só tô nervoso.
Ele passou as mãos pelo rosto, tentando controlar as lágrimas.
Eu não sabia o que responder. Não sabia como processar tudo aquilo, qúnica coisa que eu sabia era que nada tinha sido resolvido. A verdade ainda estava ali, pairando sobre nós como uma nuvem carregada.
Eu precisava fazer o exame.
Engoli em seco, sentindo um nó apertado na garganta. Gustavo me olhava, mas eu não conseguia mais encará-lo. Eu me levantei devagar, sem dizer nada, e fui até a cozinha.
Enchi um copo d’água e bebi de um gole só, mas não ajudou. Meu corpo tremia. Meus pensamentos corriam em um milhão de direções diferentes.Minha vida podia mudar completamente em alguns dias.
Com as mãos trêmulas, deixei o copo na pia e caminhei até o quarto.
Gustavo continuava sentado no sofá da sala, olhando para o nada, perdido em pensamentos.
Me joguei na cama, olhando para o teto. Meu peito doía. Minha cabeça pesava, fechei os olhos e me permiti desabar. As lágrimas vieram sem controle.
O que eu faria se desse positivo? O que eu faria se minha vida mudasse para sempre?
Eu estava perdido. Assustado. E, acima de tudo... sozinho.
Então, ouvi passos e senti o colchão afundar ao meu lado.
Abri os olhos e vi Gustavo ali, olhando para mim. Seu rosto ainda estava molhado de lágrimas, mas agora sua expressão era outra. Ele parecia... vulnerável.
Ele não disse nada. Apenas me puxou para seus braços, apertando meu corpo contra o dele.