Flores
Flores
de Miguel da Costa Franco
A primeira vez que me permiti visitá-la, em seu apartamento da João Telles, levei-lhe uns cravos rosados. Procurava ser amistoso, sem esquecer de sua resistência a minha aproximação. Não que fosse totalmente arredia. Apenas negava minha presença, suspeitando, na verdade, que eu pudesse tornar-me uma ameaça a sua integridade conjugal. Assim, prudentemente, alcancei-lhe aqueles cravos esmaecidos e tristes, de pétalas suaves mas bordadas com um serrilhado agressivo, para oferecer-lhe o conforto de uma investida suficientemente distante para ser aceita.
Naquele dia, apenas conversamos. Percebi que estava menos tensa ao fim de minha visita. Então, ao retornar, dias depois, alcancei-lhe uma anônima e casual florzinha rosada do jardim em frente. Pareceu-me confortável ao recebê-la. Prendeu-a entre os cabelos num gesto rápido, como se quisesse livrar as mãos para oferecer-me o mate. Retornou às fotos do casamento, que organizava em álbum, enquanto trocávamos de mão a cuia morna, cumplicidade que para mim antecipava calores mais febris.
Pareceu-me mais linda ao vivo, com seu vestidinho estival, embora enaltecesse o traje vistoso das fotos, seus ombros nus, a vivacidade dos olhos negros derramando fogo sobre o noivo estúpido. Chamei-o de felizardo e foi o máximo de minha ousadia. Apenas sorriu.
Abriu-me as portas para que eu lhe alcançasse um inocente buquê de florezinhas do campo em minha estada seguinte. Recebeu-as bem, embora tenha pousado seu olhar um pouco mais tempo no meu, como que a procurar alguma coisa oculta. Desviei seus pensamentos, sugerindo-lhe apoiá-lo num vasinho meio quebrado que guardava na cozinha, peça já sem importância na decoração cuidadosa de seu apartamentinho, todo enfeitado com os presentes da lista de noivas do Bazar Floresta.
Propositalmente, demorei-me um pouco a voltar, ainda que me custasse. Mas ao visitá-la outra vez permiti-me umas alegres margaridas, de modo que também ela pudesse expressar sua saudade, soltando o riso em direção àquela alegria meio kitsch: verde, amarelo e branco em profusão. Ofereceu-me o rosto e tive o cuidado de beijá-la com os lábios semi-abertos, de modo a causar-lhe uma leve sucção, intensa mas sutil, porque localizada. Sem forçá-los demais contra sua pele frágil e nem umedecer-lhe a bochecha rosada.
Apoiou as margaridas sobre o vaso de estanho da mesinha de centro, quase o primeiro na escala de importância, desculpou-se pelo robe mal composto mas ficou assim sem mais. Tirava as cutículas e manteve-se assim. Minha presença já não interrompia afazeres mais íntimos, pude sentir.
Chegara a hora das rosas. Brancas e rosadas como a pele dela. Como a porção dos seios que me oferecia aos olhos a cada vez que me alcançava a cuia de mate. Tinha-os suficientemente pequenos para lembrar-me a cada vez que apanhava o poronguinho aquecido, que um dia acabaria por tocá-los e poderia demorar-me neles a lonjura de um mate inteiro.
Pousou minhas rosas no vaso de cristal sobre a mesa de jantar. Era o lugar mais nobre da sala. De inopino, passou a contar-me de viagens que não fizera, de namoros que apenas desejara, de vestidos que não ganhara e da monareta que a infância na cidade grande não lhe permitira ter para si. Também falei-lhe de desejos recolhidos, mas num tom mais alvissareiro e esperançoso que o dela. Confortei nos meus os seus olhos inesperadamente trístes e nos abraçamos longamente ao sair.
Trouxe-lhe um buquezinho miúdo de bocas-de-leão na visita seguinte, para fazer brotar outros desejos recolhidos. Beijei-a ao chegar com os lábios menos firmes e mais úmidos do que de costume e peguei com mãos de veludo seus antebraços desnudos. Pensei tê-la ouvido suspirar. E pela primeira vez verbalizou sua saudade.
Sim, falamos de sexo. Do primeiro namorado, com quem não trepou, do roça-roça das reuniões-dançantes da adolescência, do primeiro beijo na boca.
Seus lábios estavam salivosos e tépidos quando me beijou à saída e adivinhei assim o que lhe passava nas entranhas, após quase hora e meia de lembranças até então adormecidas.
Rosas púrpuras em profusão, plenamente abertas e bem apertadas em círculo. Assim brindei-a ao retornar, uma semana depois. E pareceu-me que entendia tudo. Retraiu-se, resguardou-se um pouco.Acho que o ardor de mucosas turgescentes que minhas flores inspiravam a fez recuar.
Fez bem. Houvesse me abraçado - apertado como eu esperava que o fizesse -, teria sentido o volume um pouco incontrolado de meu sexo sob os jeans e tudo teria ido por águas abaixo. Questão de tempo. Por estratégia, demorei-me pouco aquele dia. Mas deixei correr suavemente meus dedos em seu pescoço na hora de despedir-me dela, ao vão da porta, e beijei-a levemente, soprando uma brisa imperceptível mas quente no lóbulo de sua orelha, para fazê-la desejar rosas vermelhas da próxima vez.
Mas não. Trouxe-lhe uma única orquídea, numa caixa estreita, e antecipei-me a despi-la lenta e carinhosamente de sua embalagem delicadamente rendada, para entregá-la, com a exuberância de seus grandes lábios escancarados, após uma aspirada profunda em seu aroma difuso, a uma ruborizada esposinha do Bonfim.
Abraçou-me de corpo inteiro e pude sentir-lhe os mamilos intumescidos e o corpo açodadamente entregue ao meu abraço prolongado. Beijei-lhe os cabelos, num afago quase paternal. Para tranquilizá-la.
As coisas estavam tomavam um rumo conhecido.Depois, sentamo-nos, lado a lado, e mostrei-lhe um livro que trouxera com gravuras de obras do Rodin, para instigar-lhe o desejo do toque, e pude pousar minha mão em suas coxas firmes, em afagos brandos e discretos.
Achei que ela estava pronta para os antúrios vermelhos.E estava mesmo. Senti sua voz um pouco alterada no porteiro eletrônico, quando voltei, uns dias mais. Esperou-me já ao fim da escada no andar onde morava. E mal fechou a porta, beijou-me a boca loucamente, enfiando uma linguinha ágil e entusiasmada entre meus lábios complacentes. Afastou os antúrios que eu empunhava contra o peito e pôs-se a abrir sofregamente minha camisa, beijando meu tórax aqui e ali, sugando meus mamilos com gana e por fim, descendo ao meu pau, que tratara de livrar com a outra mão, e engolindo-o inteiro, como se quisesse morrer.
Depois recuou em frenesi para as almofadas sobre o tapete, livrando-se da saia ansiosamente e oferecendo-me a janela sumarenta de seu púbis, que calcinha já nem pusera, para a arremetida estudada e vigorosa que empreendi. Derramou-se em lágrimas enquanto se acabava, como se fosse insuficiente derreter-se por entre as pernas, dizendo sempre, quase gritando, que estava sentindo a coisa descer pelo meu pau, que coisa louca.
Trepamos naquela tarde por todas as semanas que durara o meu assédio, fizemos de nossos corpos espirais de gozo e malemolência. Amei-a como pude, rememorando sonhos carbonários e livre-criando formas de alcançar uma outra vez aquele buraquinho pulsante e insurgente que nos fazia arder.
Já sem forças mas ainda brincando com seu corpo nu, na intimidade das barreiras transgredidas,corri meu dedo médio até sua vulva intumescida e encharcada e levei-o assim, molhado e lentamente, ao seu ânus fechadinho. Carinhosamente, afastou-me a mão, alegando um cansaço dos deuses. Ele está por chegar, me disse, enfim. E me fez sair, entre carícias e beijos apaixonados.
Quando voltei à florista da esquina, ela adivinhou por meu semblante que os antúrios haviam cumprido sua função. Ofereceu-me - cúmplice da próxima investida -, uma braçada de papoulas, salpicada de flores do campo, com rendas de cipreste em ornamento. Aceitei a sugestão.
Mas afastei-me a passos lentos, olhando de soslaio para uns botõezinhos de rosa-miúda, ainda bem fechados e hostis.
Vou levá-los numa próxima visita.