A gerente me olhava de cima a baixo, um ar petulante de quem fareja o mundo sujo que possa existir no interior dos homens. Talvez ela tentasse farejar um garanhao que pudesse afastá-la um pouco da frigidez sexual. Eu nao era nada disso.
— Amanhã você precisa bater xerox de toda a documentação e levar até nosso escritório. E bem vindo à nossa empresa!
Assenti timidamente e prendi a respiração ao olhar para o lado. Um homem de mãos grandes mexia em um saco de lixo, transferindo seu conteúdo para outro saco que balançava suavemente ao lado dos cestos. Seu cabelo preto escapava da prisão do gorro nas laterais e sua barba começava a crescer em torno do rosto. A pele morena era faiscante como uma muralha de mel raiando ao sol da tarde. Mesmo com as luvas descartáveis, dava para notar que ele possuía vibrantes mãos de gorila.
Virei a cabeça para trás e estudei a cozinha que emitia ruídos de vozes aceleradas e alarmes de máquinas de fast food.
Amanhã aquilo seria meu dia e minha luta.
II
Eu já havia terminado de vestir o uniforme quando sinto que algo acontecera na chapa. Algo não trivial.
— Você é retardado ou o quê? — gritou o pálido gerente de plantão. — Essa porra não pode ser usada por moleques, e esse é um erro que se comete todo dia por aqui. Mas que diabos essa loja tem para contratar sempre um débil como esse?
O rapaz que recebia o esporro não o enfrentava com a voz e nem mesmo com o semblante, mas pude ver que suas mãos tremiam como se estivessem sendo consumidas por violento ímpeto. Olhando melhor para ele, logo o reconheci como sendo o rapaz do dia anterior, e aquelas mãos eram as colossais mãos de gorila.
Despertei dos pensamentos ao ouvir a gerente dirigir-se a mim com impaciência mal disfarçada.
— Bom, você hoje vai iniciar na área de bebidas e sobremesas. — A gerente novamente me examinou com astúcia. — Sabe como funcionam as torres?
III
A gerente de plantão me liberou para o break e apressei o passo em direção à sala destinada a isso. Desabei no banco próximo ao banheiro e enfim chorei.
"Por que diabos eu estou me submetendo a tudo isso?"
Indaguei-me centenas de vezes se eu realmente ainda era tudo aquilo que meus pais haviam dito sempre. Forte, culto, delicado, sensível, fino, elegante...nada disso parecia verdade quando eu estava dentro de uma cozinha fétida, em um restaurante de fast-food barato e pisando em um chão que sempre estava escorregadio por causa da gordura das batatas e da chapa.
Eu podia sentir os olhares dos funcionários sentados à mesa. Todos me viam apenas como um lerdo, ignorando toda a bagagem que eu recebera desde a raiz da minha existência. Eu já sabia ler quando todos aqueles primatas ainda estavam retidos na ignorância da vida medíocre de quem nasce de um ventre inculto. Aquilo era hereditário, crônico. Eu não poderia me aproximar de nenhum deles.
— Eles só gritam com você se você permitir — disse uma voz rouca que parecia ter sido produzida por uma transmissão de radionovela dos anos cinquenta. E, santo Deus, a voz era dele! Era o rapaz da mãos imensas!
— Este lugar funciona na base do mais forte. Se você deixar, será devorado e não passará de um tapete conformado em ser pisoteado todos os dias. Alias, meu nome é Plínio.
— Mas você ouviu gritos — rebati, em um voz baixa demais — e nao respondeu também.
Ele suspirou, o peito subindo e descendo sob a camisa sombria da empresa. A ausência de vida do uniforme contrastava horrivelmente com a carinha solar dos brindes e caixinhas de lanches.
— Eu não respondi por um motivo: eu sei que eu mataria aquele cara no mesmo instante em que deixasse o turbilhão de ódio vazar de mim. Eu precisava ficar quieto.
— E quem disse que eu também não sou um turbilhão comportado?
Ele riu levemente.
— Pode até ser. Mas eu acho difícil.
Eu começava a sentir uma pontada de irritação. Meus olhos se recusavam a abandonar a visão daquelas mãos.
— E por quê?
Ele não respondeu e se retirou, lançando um olhar rápido e furtivo para minhas pernas brancas.
IV
A gerente de plantão noturno estava em um péssimo dia. Apesar de bem vestida, o cabelo muito bem retido na rede, ela nitidamente era uma caipira que obtivera ascensão de cargo sabe-se lá Deus por quê.
— Você já tem duas semanas aqui, já deu tempo suficiente de aprender a encher uma batata com o volume correto. Padrão!
Eu senti minha testa suar frio. Duas semanas eram muito pouco tempo para aprender a dominar a insegurança de quem nunca ouvira gritos e brutalidade.
— Ele já sabe fazer dentro do padrão — disse Plínio.
A gerente fulminou-o com o olhar.
— Se ele soubesse, nao estaríamos aqui tendo esta discussão, não é mesmo? Acho bom ficar quieto, ou providencio uma advertência para você.
Plínio me olhou com um brilho maroto motivador, ao mesmo tempo em que parecia dizer: "nao responda, eu estou por perto para defender você dos lobos!"
V
O banheiro masculino dos funcionários, em horário de saida, lembrava um banheiro de presídio, tamanha era a baderna, os atrevimentos verbais dos funcionários mais periféricos e a sujeira no piso.
Eu me vesti rapidamente, ansioso para sair, e atravessei o corredor sem olhar para os lados e para os ombros nus que também se vestiam nos arredores. Ao atingir o portão de saída dos funcionários, uma mão tocou meu braço com violência.
— Onde está sua touca? — indagou o gerente, furioso como se eu houvesse atropelado seu cão. — Coloque-a imediatamente!
Eu não poderia especificar onde eu poderia ter adquirido tal coragem, mas encarei-o firmemente e disparei:
— Não enche a porra do saco! Já estou em horário de saída e é isso que irei fazer. Ir embora!
O gerente, ainda mais envelhecido do que na semana passada, devido às jornadas noturnas estressantes, apertou meu braço com mais força.
— Solta ele! Agora! Ou eu sangro seus dentes.
Plínio novamente parecia ter surgido de outro lado astral. O gerente, visivelmente intimidado com as ameaças daquelas mãos, desfez seu ódio, mas não um ultimato.
— Amanhã vocês dois vão se arrepender disso. Aguardem a suspensão generosa que virá!
E retirou-se trotando, de volta às gorduras de bacon e à desordem que sempre falhava miseravelmente em ser ordem.
— Obrigado — disse eu, e saí pela porta, sem olhar para trás.
A mao direita de Plínio tocou meu braço, na mesma região onde o gerente tocara. Mas seu toque distinguia-se largamente pelo carinho com que me tocava, as pontas dos dedos rastejando-se em torno das minhas sardas e sobre o vermelhidão da violência do gerente. Suas mãos brutas me respeitavam e me suavizavam daquele horror do fast-food.
Continua...