A casa dos Weiser estava mergulhada em um silêncio sufocante quando Wagner abriu a porta. O peso da noite parecia ter se infiltrado nas paredes, tornando tudo mais denso, mais pesado. Ele fechou a porta atrás de si com cuidado, o barulho mínimo ecoando na quietude, como se até mesmo a casa sentisse a iminência do colapso.
Seu peito estava apertado desde que saíra. Ele não queria voltar. Não queria encarar o que já sabia estar esperando por ele. Mas o inevitável não pode ser adiado para sempre.
Deixou as chaves sobre o aparador e passou os olhos pela casa escura. Algo estava errado. A ausência de som não era apenas um indício de que todos estavam dormindo. Havia algo naquela quietude que não era natural.
Então, ouviu um soluço baixo. Vinha da cozinha.
O coração de Wagner acelerou. A hesitação durou um segundo antes que ele seguisse. Ao chegar à porta, encontrou Clara sentada à mesa, os ombros caídos, a cabeça apoiada nas mãos trêmulas.
Na papelada espalhada à sua frente, o nome de Vincent e o dela. Palavras duras impressas no papel.
Divórcio.
O sangue de Wagner gelou.
Ele sabia que isso aconteceria, claro que sabia. Mas ver as provas físicas ali, diante dele, era diferente. Era real.
Clara soluçou baixinho, os dedos apertando os papéis como se quisesse rasgá-los, desfazê-los, apagá-los da existência, mas era tarde demais.
Wagner sentiu um nó apertar sua garganta. Parte dele queria simplesmente sair dali, evitar aquela cena como evitava tudo ultimamente. Mas não conseguiu.
Caminhou até a mãe e tocou de leve seu ombro.
Ela se encolheu sob o toque, como se sua própria pele doesse. Então, virou-se para ele.
Os olhos estavam vermelhos, inchados. O rosto marcado pela tristeza, pelo cansaço.
Wagner sentou-se ao lado dela sem dizer nada. Por um momento, apenas olhou para os papéis, absorvendo tudo.
— Ele assinou — A voz dela saiu rouca, quebrada.
Wagner respirou fundo.
— Tu sabia que ia acontecer, mãe.
Clara riu, mas foi um riso amargo, desesperado.
— Saber não significa estar pronta.
Ela passou as mãos pelo rosto, tentando conter mais lágrimas.
Wagner olhou para a mesa, para a assinatura do pai impressa no papel. Seu peito doía. Agora, tudo que restava eram destroços.
— Como foi? — Ele perguntou, baixando o olhar para as mãos.
Clara soltou um suspiro tremido.
— Ele mostrou um vídeo.
Wagner fechou os olhos por um instante. O impacto foi instantâneo.
Ele não precisava perguntar que tipo de vídeo. Ele sabia.
O estômago de Wagner revirou. E sua culpa ficou mais pesada.
— Foi horrível — Clara continuou, sua voz trêmula, mas cansada. Exaurida. — Ele não gritou. Não me xingou. Não jogou nada na parede. Só… ficou ali. Me olhando como se eu fosse uma estranha. Como se eu nunca tivesse sido alguém importante pra ele.
Ela levou as mãos ao rosto novamente, sufocando um soluço.
— E eu vi… — sua voz era apenas um sussurro — Vi nos olhos dele quando ele me matou por dentro.
Wagner sentiu o coração apertar ainda mais. A raiva cresceu em sua garganta, mas não sabia ao certo para quem direcioná-la.
— Tu errou, mãe.
Clara arregalou os olhos.
Wagner não levantou a voz, mas suas palavras cortaram como uma lâmina fria.
— Tu tava traindo e enganando ele. Só podia dar nisso.
Os lábios de Clara tremeram.
Wagner desviou o olhar, o peito apertado de um jeito que o sufocava.
Então, um som no corredor fez Wagner erguer os olhos. O peso do mundo desabou sobre ele quando viu Vincent parado no topo da escada. Seu pai estava ali, observando.
O olhar fixo nele. Ele ouviu e ouviu tudo.
E pela primeira vez, Wagner viu o reconhecimento nos olhos de Vincent.
Ele sabia. Sabia que Wagner sabia e que, assim como Clara, ele também escondeu a verdade.
**********
O quarto estava mergulhado em penumbra, iluminado apenas pela luz que vinha do jardim. Vincent deslizava a mão pelo interior da mala, dobrando meticulosamente cada peça de roupa antes de guardá-las. Os gestos eram mecânicos, precisos, uma tentativa frustrada de manter a mente ocupada, mas sua mente já não lhe pertencia mais.
A assinatura no divórcio selava o fim de um casamento que, talvez, já tivesse acabado há muito tempo. A traição, as mentiras, os olhares desviados, tudo aquilo agora fazia sentido.
O silêncio era opressor. O peso da casa se tornara insuportável, como se as paredes tivessem absorvido cada decepção, cada cicatriz, cada resquício do homem que ele um dia fora. Ele não poderia passar aquela noite ali.
Abriu a gaveta inferior da cômoda, o fundo de madeira rangendo levemente. Suas mãos alcançaram algumas meias e camisetas, mas então, seus dedos tocaram algo frio.
Por um momento, seu coração parou. Ele sabia o que era antes mesmo de puxá-lo.
Lentamente, ergueu o pequeno colar entre os dedos. O pingente de obsidiana em forma de coração cintilou sob a fraca luz.
A pedra negra reluzia como se guardasse dentro de si todas as sombras do passado. E guardava.
Era tudo o que restara dela. Nora.
Seu peito apertou, o coração golpeando dentro das costelas. Quantos anos fazia desde a última vez que tocara naquele colar?
Quantos anos fazia desde que ele deixou de esperar por um telefonema, por uma carta, por qualquer sinal de que ela se arrependia de tê-lo deixado?
Os dedos se fecharam ao redor da obsidiana, como se pudessem esmagá-la, mas ele sabia que não poderia. A pedra era firme, inquebrável. Exatamente como ele tentou ser. O tempo não havia apagado nada. Ele se recusara a pensar em sua mãe por anos, mas ali estava ela. Sempre esteve.
Vincent fechou os olhos e inspirou fundo. Não havia espaço para o passado. Não agora. Jogou o colar dentro da mala sem mais olhar para ele e a fechou de um só movimento.
Passou uma última olhada no quarto antes de pegar a mala e caminhar até a porta. Não olhou para trás.
Ao descer as escadas, ouviu vozes na cozinha.
Ele parou no último degrau.
A princípio, foi apenas um ruído, abafado, distorcido pela distância. Mas então, ele reconheceu a voz de Wagner.
E cada fibra de seu corpo se enrijeceu.
— Tu sabia que ia acontecer, mãe.
Vincent estreitou os olhos.
Os dedos apertaram a alça da mala.
Silêncio. Depois, a voz de Clara.
— Saber não significa estar pronta.
Vincent sentiu o peito ferver.
O tom dela. O peso das palavras. A resignação de quem já aceitava o próprio crime.
Então, Wagner perguntou.
— Como foi?
Vincent prendeu a respiração.
— Ele mostrou um vídeo.
O impacto daquelas palavras foi instantâneo.
As imagens vieram à tona como uma lâmina afiada perfurando sua mente. O carro, a rua deserta, os gemidos abafados. A traição capturada em pixels malditos que ele nunca conseguiria apagar da memória.
Ouviu Wagner soltar o ar devagar. Ele não parecia chocado. Ele já sabia.
Ele já sabia. Vincent piscou devagar, os olhos fixos no chão. O filho dele já sabia. O sangue gelou. Seu corpo ficou rígido.
Wagner sabia. Sabia e não disse nada.
Então, ouviu a sentença final.
— Tu errou, mãe.
Vincent levantou a cabeça.
— Tu tava traindo e enganando ele. Só podia dar nisso.
O peito de Vincent subiu e desceu devagar.
Um silêncio sepulcral caiu sobre a casa.
E então, Wagner levantou os olhos e viu. A expressão dele era um abismo negro, intransponível.
O rosto de Wagner perdeu toda a cor. A verdade fora exposta.
Um peso intransponível desabou sobre o ambiente.
Clara levou uma das mãos aos lábios, as lágrimas escorrendo sem controle. Vincent desceu os últimos degraus devagar.
Cada passo reverberava pela casa. Parou na soleira da cozinha, o olhar fixo em Wagner, que engoliu em seco, os músculos tensos.
Vincent não precisou dizer nada. Seu olhar dizia tudo.
Wagner havia escolhido um lado e não era o dele.
**********
A recepção da empresa estava vazia quando Vincent passou pela porta de vidro. O silêncio era cortante, preenchido apenas pelo eco de seus próprios passos no piso frio. O segurança da noite, um homem de meia-idade acostumado a uma rotina monótona, franziu a testa ao vê-lo entrar àquela hora.
— Senhor Weiser? — A voz carregava surpresa e hesitação.
Não era comum o chefe aparecer ali depois do expediente, muito menos de mala na mão.
Vincent manteve a expressão inalterada. Sua voz saiu firme, mas sem qualquer emoção.
— Vou passar a noite aqui.
O segurança assentiu lentamente, mas ainda parecia desconcertado.
— Precisa que eu providencie alguma coisa?
— Não.
A palavra saiu seca, definitiva. O homem recuou sutilmente, respeitando o limite invisível que Vincent impunha sem esforço.
Subiu pelo elevador até o último andar, sentindo o peso de sua própria existência aumentar a cada metro que o afastava da casa onde não queria mais estar. Quando as portas se abriram, caminhou direto para a sala de descanso, um espaço raramente usado por ele, mas bem equipado para emergências ou noites em que o trabalho exigia mais do que um expediente convencional.
Apoiou a mala ao lado do sofá e passou as mãos pelo rosto, esfregando as têmporas, tentando dissipar o latejar constante em sua cabeça. O cheiro daquela casa ainda estava em sua roupa. O cheiro das mentiras.
Sentou-se na poltrona próxima, puxando o zíper da mala sem olhar diretamente para dentro dela. Se encarasse o que havia ali, se visse a roupa dobrada, o colar de obsidiana jogado no canto, poderia perder o pouco de controle que ainda lhe restava.
Apoiou os cotovelos sobre os joelhos, fechou os olhos.
A imagem de Wagner, parado diante dele, incapaz de sustentar seu olhar, incapaz de dizer qualquer coisa.
O próprio filho o havia traído.
Não fisicamente, não da maneira brutal que Clara o fez, mas o golpe não era menos profundo. Havia deixado que ele vivesse na escuridão, que se tornasse um homem ridículo, cego para a verdade que todos ao redor enxergavam.
Um riso curto e sem humor escapou de seus lábios.
Não importava o quanto tentasse ser diferente, no final das contas, estava revivendo a história de seu pai.
A noite foi longa, e Vincent dormiu pouco. Quando o despertador do celular vibrou às cinco e meia da manhã, seus olhos já estavam abertos, encarando o teto branco.
Levantou-se, seguiu até o banheiro e jogou água fria no rosto, mantendo-se ali por um tempo, observando seu próprio reflexo no espelho. O rosto que encarava de volta parecia mais cansado, as sombras sob os olhos mais fundas, as rugas de expressão mais marcadas.
Afastou-se, pegou o colar de obsidiana da mala e passou os dedos pelo pingente negro. Por anos, ele usou aquela corrente, carregou aquele peso, aquela lembrança amarga. Depois de um tempo, havia guardado no fundo de uma gaveta, como se esconder aquilo fosse apagar tudo o que veio antes.
Mas agora, o passado estava diante dele novamente.
O toque na porta foi discreto, mas firme.
— Vincent?
A voz de Luna.
Ele suspirou, guardou o colar no bolso e seguiu para a sala ao lado.
Luna já estava sentada em uma das cadeiras, segurando um café.
Os olhos dela imediatamente pousaram sobre ele, e Vincent soube que ela viu.
Viu as olheiras mais profundas, viu o cansaço nos ombros tensos, viu a sombra do homem que ele costumava ser nos anos mais sombrios de sua vida.
Viu o colar que ele havia recuperado.
O silêncio entre eles foi curto.
Luna pousou o café sobre a mesa, inclinando-se levemente para frente.
— Então, aconteceu.
Vincent puxou a cadeira oposta e sentou-se, deslizando a mão sobre o tampo da mesa.
— Sim. O divórcio foi assinado.
Luna não reagiu.
— E Wagner?
Vincent crispou a mandíbula, mas manteve o olhar baixo.
— Sabia.
Luna cruzou os braços, estreitando os olhos.
— Desde quando?
Vincent deu de ombros, mas seu maxilar estava rígido.
— Tempo o suficiente para me fazer de idiota.
O silêncio caiu sobre os dois por um momento. Luna manteve-se quieta, os olhos percorrendo o rosto dele, como se buscasse algo que ele ainda não estava disposto a oferecer.
— Ele ficou do lado dela?
Vincent soltou uma risada curta, irônica.
— Ele não precisou escolher lado. Só precisou ficar calado.
Luna assentiu devagar, absorvendo as palavras.
— E agora?
Vincent balançou a cabeça, desviando o olhar para a janela.
— Agora? — Sua voz saiu mais baixa, carregada de algo que nem ele soube definir. — Agora eu não sei mais quem são as pessoas dentro daquela casa.
Luna o observou por mais alguns segundos antes de falar novamente.
— E tu?
Vincent franziu a testa.
— O que tem eu?
Ela inclinou-se para frente, apoiando os braços sobre a mesa.
— Tu passou anos tentando deixar aquele garoto que eu conheci pra trás. Aquele que carregava essa obsidiana no pescoço como se fosse a única coisa no mundo que o mantinha de pé.
Ela apontou para o colar, ainda parcialmente visível no bolso da camisa dele.
— E agora? Esse garoto voltou?
Vincent permaneceu em silêncio por um instante.
Luna respirou fundo.
— Só lembra de uma coisa.
Ele ergueu os olhos para ela.
— O que quer que tu decida fazer a partir daqui, Vincent…
Ela se inclinou um pouco mais.
— Não comete o erro do teu pai.
A menção ao pai queimou como ácido.
Vincent fechou os olhos por um instante, deixando as palavras dela pairarem no ar.
Quando os abriu novamente, seus olhos estavam diferentes.
Luna suspirou, encostando-se na cadeira.
— É tarde demais pra te pedir isso, né?
Vincent não respondeu.
Ele deslizou a mão sobre o bolso novamente, sentindo o contorno da pedra fria sob o tecido.
E no fundo do bolso, a obsidiana pesava como uma âncora do passado que nunca o deixaria partir.
**********
A manhã seguia em um ritmo arrastado na clínica. O cheiro de café misturado ao leve aroma de antissépticos preenchia o ambiente, mas Priscila não sentia nenhum conforto na rotina. Desde a conversa com Clara dias atrás, um incômodo latente pairava sobre ela. Nada mais parecia normal.
Ela terminou de anotar os últimos dados da ficha da paciente e sorriu educadamente para Sofia, que ajustava a bolsa no ombro antes de caminhar em direção à porta de vidro.
— Obrigada por esperar, Sofia. Se precisar de algo, só nos procurar.
Sofia assentiu com um sorriso calculado. Seu olhar era atento, analítico, como se absorvesse cada detalhe ao redor.
— Eu que agradeço. Sempre preciso de algo, mas no momento, já consegui o bastante.
Priscila franziu levemente o cenho, sem tempo para processar a resposta enigmática, pois a porta se abriu novamente e Clara entrou.
O choque visual foi imediato.
Clara estava diferente. Pálida. Os olhos fundos, o semblante exausto. Mesmo tentando manter a compostura, havia algo nela que não conseguia disfarçar. O peso da noite mal dormida transparecia em cada detalhe.
Clara cruzou com mulher na entrada da clínica, ela percebeu o olhar sorrateiro lançado sobre ela.
— Noite difícil?
Clara piscou, surpresa pela abordagem inesperada.
— Desculpa?
Sofia inclinou ligeiramente a cabeça, um pequeno sorriso brincando no canto dos lábios.
— Nada. Apenas uma observação. Algumas mulheres perdem o sono por motivos óbvios. Mas creio que a senhora já saiba disso.
Antes que Clara pudesse questionar o real significado daquelas palavras, ela já havia entrado no elevador, deixando para trás uma dúvida incômoda que se instalou na mente de Clara.
Priscila desviou o olhar, focando-se na tela do computador, evitando encarar Clara diretamente.
Ela sabia que Priscila ainda estava desconfortável com tudo o que sabia sobre ela.
— Alguma novidade? — A voz dela saiu baixa, cautelosa.
Priscila digitou algo rapidamente antes de responder.
— Não. Tudo segue… como sempre.
Clara forçou um sorriso e seguiu para sua sala, mas a ansiedade a acompanhou, um pressentimento incômodo alojado no peito.
Enquanto isso, do outro lado da cidade, Vincent estava em meio a uma reunião de gabinete com seus advogados e Luna.
A mesa de vidro refletia os papéis organizados com precisão matemática, os contratos do divórcio empilhados no canto, já assinados, prontos para seguirem seu curso final.
A voz de um dos advogados ecoava pelo ambiente, mas Vincent estava distante. A mente ainda presa nos eventos da noite anterior, na traição escancarada, na confissão silenciosa do próprio filho.
O peso da obsidiana em seu bolso parecia mais forte a cada segundo.
Luna percebeu sua distração.
— Vincent.
Ele piscou, voltando ao presente.
— O que foi?
Antes que Luna pudesse repetir a pergunta, a porta se abriu sem aviso.
Todos na sala ergueram os olhos ao mesmo tempo.
Sofia entrou.
O clique dos saltos no piso ecoou pelo ambiente enquanto ela caminhava até a mesa. Seus olhos encontraram os de Vincent com uma intensidade controlada.
— Trouxe algo que vai te interessar.
Ela ergueu um pequeno flash drive entre os dedos.
Luna franziu o cenho, enquanto Vincent apenas gesticulou para que ela continuasse.
Sofia sorriu, um sorriso seco.
— É uma gravação.
Ela pousou o flash drive sobre a mesa e deslizou-o para Vincent.
— Entre Priscila e tua ex-mulher.
O ar na sala ficou denso.
Vincent permaneceu em silêncio por um instante antes de pegar o dispositivo e conectá-lo ao laptop.
Luna trocou um olhar com Sofia, mas não interveio. Ela sabia que não havia como deter o que estava por vir.
O arquivo de áudio foi aberto.
A gravação começou.
A voz de Priscila soou primeiro.
— Tu tem certeza?
Houve um breve silêncio antes da resposta de Clara.
— Sim. Eu fiz o teste, Priscila. Estou grávida.
O coração de Vincent congelou.
A sala mergulhou em um silêncio sepulcral.
Sofia cruzou os braços, esperando.
Vincent apertou a mandíbula, os olhos fixos na tela, ouvindo cada palavra com atenção cirúrgica.
A voz de Priscila veio novamente.
— E é dele?
Outro silêncio.
Clara hesitou.
— Eu não sei.
O sangue de Vincent ferveu.
O silêncio foi interrompido pelo ruído de um copo sendo colocado com mais força do que o necessário sobre a mesa. Luna desviou o olhar, enquanto um dos advogados mexeu desconfortavelmente na cadeira.
A gravação continuava.
Clara sussurrou algo, quase imperceptível.
Mas foi o suficiente.
— Se for do Otávio, o que eu faço?
A tela do laptop foi fechada de um golpe seco.
Vincent permaneceu imóvel, os olhos fixos na madeira escura da mesa, enquanto uma onda de emoções conflitantes passava por ele.
Sofia apenas observava.
Luna foi a primeira a falar.
— Vincent…
Ele ergueu a mão, silenciando-a.
Respirou fundo, segurando o ar por um momento antes de soltá-lo lentamente.
Quando ergueu os olhos novamente, havia algo diferente neles.
Algo quebrado. Algo irreparável.
Ele não disse nada. Não precisava. O destino de Clara já estava selado.
**********
Clara entrou na sala de Otávio, fechando a porta atrás de si com um movimento automático. Nada parecia real. Tudo estava abafado, distante, como se ela estivesse atravessando uma neblina espessa.
Seu corpo tremia levemente, mas não pelo frio. Era pelo peso do que estava prestes a desmoronar.
Otávio ergueu os olhos do computador no instante em que ela entrou, e seu rosto se contraiu de imediato. Ele não precisou perguntar o que havia acontecido, ele viu.
Viu os olhos vermelhos, a forma como seus ombros estavam caídos, o jeito como sua respiração parecia pesada demais para o próprio peito suportar.
— Clara…
Ela não respondeu. Apenas deu mais um passo para dentro da sala, e foi o suficiente.
Otávio se levantou rapidamente e a envolveu nos braços.
O perfume dele a cercou no instante em que seu rosto encontrou abrigo no peito largo, e foi ali que as lágrimas finalmente caíram. Ela segurou o jaleco dele com força, os dedos apertando o tecido como se isso pudesse impedir sua realidade de ruir de vez.
Ele não disse nada. Apenas deslizou os dedos por seus cabelos, segurando-a firme, como se pudesse absorver parte de seu sofrimento.
A única coisa que ele queria era protegê-la.
Os soluços eram baixos, mas cada um deles cortava Otávio como uma lâmina invisível.
— Ele descobriu? — Sua voz era um sussurro.
Clara assentiu contra o peito dele, sentindo os músculos do amante ficarem tensos ao redor dela.
— Ele me mostrou um vídeo — Sua voz quebrou na última palavra.
Otávio fechou os olhos, exalando um suspiro longo. Ele sabia que esse dia chegaria, mas não estava pronto para ver Clara assim. Ele deslizou as mãos por suas costas, afastando-se apenas o suficiente para que ela olhasse para ele. Seus dedos seguraram o rosto dela com carinho, limpando as lágrimas em sua bochecha.
— Isso não muda nada.
Os olhos de Clara estavam desesperados.
— Muda tudo, Otávio. Eu não posso mais fugir.
Otávio a fitou por longos segundos antes de falar.
— Então vamos juntos.
Clara piscou, surpresa.
Otávio segurou suas mãos, sua voz baixa e firme.
— Vamos sair daqui. Por uns dias. Só eu e você.
Ela balançou a cabeça, confusa.
— Ir para onde?
Ele deu de ombros, um pequeno sorriso surgindo nos lábios.
— Qualquer lugar onde o passado não possa nos alcançar.
Clara fechou os olhos por um instante. A ideia era tentadora.
Fugir. Desaparecer, nem que fosse por poucos dias. Longe dos olhares de julgamento. Longe da culpa. Longe de Vincent.
Ela não confiava mais em sua própria casa. Não sabia como Vincent agiria agora.
Quando abriu os olhos, Otávio a olhava com uma intensidade que a fez prender a respiração.
— Eu te amo, Clara.
A confissão foi como um choque.
Ela já sentia isso nas atitudes dele, no jeito como a segurava, no jeito como falava com ela. Mas ouvir as palavras em voz alta foi diferente.
Otávio apertou as mãos dela, os olhos firmes nos dela.
— Eu te amo. E não importa o que aconteça, eu vou te proteger.
Clara sentiu algo quebrar dentro dela.
Por um instante, foi como se tudo ao redor desaparecesse.
A dor, a culpa, o medo.
Só existia o calor das mãos de Otávio e as palavras que ele dissera.
E foi por isso que ela disse a única coisa que sabia que ainda tinha forças para dizer.
— Eu vou.
Otávio a puxou para um beijo.
Um beijo quente, firme, carregado de tudo o que não podiam dizer em palavras.
Quando se afastaram, ele tocou sua bochecha mais uma vez.
— Volta pra casa e faz as malas. Eu passo para te buscar.
Ela assentiu.
E pela primeira vez em dias, Clara sentiu que ainda havia um pouco de ar para respirar.
O céu ainda era azul quando Clara e Otávio pegaram a estrada. O sol pairava baixo no horizonte, lançando um brilho dourado sobre os campos ao redor, iluminando a paisagem que passava rápida pela janela do carro. O vento morno entrava pelo vidro entreaberto, bagunçando os cabelos de Clara, mas ela não se importava. Era uma liberdade que não sentia havia muito tempo.
Otávio dirigia com uma mão no volante e a outra descansando sobre a coxa dela, um gesto silencioso de conforto. O polegar dele traçava círculos sutis contra sua pele, como se quisesse lembrá-la de que estava ali, que ela não estava sozinha, mas, mesmo com o calor do toque dele, a angústia ainda morava dentro dela.
Ela olhou pelo retrovisor e viu a cidade de Blumenau ficando para trás. A cidade onde sua vida estava desmoronando. A cidade onde Vincent sabia. Onde Wagner sabia. Onde seu futuro estava à beira de um colapso.
Ela virou o rosto para Otávio. A única certeza que restava.
— Acha que estamos fazendo a coisa certa?
A pergunta escapou de seus lábios antes que pudesse segurá-la.
Otávio não desviou os olhos da estrada, mas apertou levemente sua coxa.
— O que seria a coisa certa, Clara?
Ela não respondeu. Porque não sabia. Tudo parecia uma névoa em sua mente. Ela queria fugir, mas para onde? E por quanto tempo?
Otávio apertou a mandíbula antes de continuar.
— A coisa certa, pra mim, é estar contigo. Cuidar de ti.
Clara fechou os olhos. Ele realmente a amava. E se tudo desmoronasse de novo? E se aquele bebê não fosse dele? Ela apertou as mãos sobre o colo, sentindo a pele formigar.
Otávio olhou de relance para ela, percebendo sua inquietação.
— Ei.
Ele levou a mão até a dela, entrelaçando seus dedos.
— Para de pensar tanto.
Ela soltou um riso curto, mas não havia humor ali.
— É difícil.
Otávio sorriu.
— Então deixa eu te ajudar.
Ele levantou a mão dela até seus lábios e depositou um beijo suave contra seus dedos.
Clara suspirou.
Eles seguiram viagem. A estrada estava livre, as árvores ao redor lançavam sombras passageiras sobre o carro, criando padrões de luz e escuridão sobre a pele exposta de Clara.
Por um momento, ela permitiu-se acreditar que estavam indo para um novo começo, mas o destino não permitiria isso.
O som surgiu do nada, um ronco de motor descontrolado.
Clara ergueu os olhos no mesmo instante em que Otávio praguejou, os músculos retesando-se ao redor do volante.
— Merda!
Na curva, um carro surgiu veloz, oscilando entre as faixas, desgovernado.
Otávio reagiu rápido, girando o volante num reflexo automático.
As rodas do carro derraparam no asfalto quente, um solavanco violento jogando Clara contra o banco. O grito dela foi sufocado pelo som ensurdecedor do impacto. Metal contra metal.
O mundo girou.
O vidro estilhaçou.
O carro deslizou pela pista, saiu da estrada e foi lançado contra o barranco, girando duas vezes antes de finalmente parar.
O silêncio veio logo depois. Pesado. Cruel. Clara piscou lentamente, a visão turva. Ela não conseguia se mexer. A dor era intensa, mas não tão forte quanto o pânico que subia por sua garganta.
Ela virou a cabeça com esforço.
— Otávio…
Nenhuma resposta.
Seu peito subia e descia, fraco.
Havia sangue.
Muito sangue.
Clara tentou estender a mão para ele, mas algo dentro dela gritou em protesto.
Uma dor lancinante percorreu seu ventre.
O pânico explodiu dentro dela. O bebê.
— Otávio! — Sua voz era fraca, engasgada.
Ela tentou se mover, mas seu corpo estava preso. O cheiro de fumaça se intensificava.
Eles precisavam sair dali.
Mas o mundo ao seu redor começava a escurecer.
A última coisa que ouviu antes de perder a consciência foi o som distante de sirenes.
E então, nada mais.