TERÇA FEIRA
Na terça-feira de manhã, recebi uma mensagem de Sofia, dizendo que as aulas estavam canceladas por conta de um incêndio na escola. Um pequeno incêndio na cozinha, mas era o suficiente para deixar o dia livre. Eu até deveria me sentir aliviado, mas na verdade me senti mais perdido do que nunca. Ficar em casa, sozinho, com meus pensamentos, não parecia ser uma boa ideia. Então, decidi ir tentar correr no parque. Talvez, só talvez, o vento no rosto fosse me ajudar a esquecer, nem que por alguns minutos, tudo o que estava acontecendo dentro de mim.
Cheguei ao parque e comecei a correr, tentando me perder nos meus próprios passos, na respiração pesada, na batida do meu coração acelerado. A sensação de estar em movimento, de sentir o corpo em ação, era um refúgio temporário para a mente que não parava de gritar.
Mas, quando eu já estava na trilha mais afastada, a paz que eu tentava encontrar foi quebrada por algo que me fez congelar.
No banco, à distância, estavam Arthur, Gabriel e Thales. Quando me viram, seus olhos brilharam com algo que eu não queria ver. Algo cruel.
Meus pés ficaram paralisados. A última coisa que eu queria era cruzar com eles aqui, no meio de um dia em que, teoricamente, eu deveria estar sozinho.
— Olha só quem resolveu dar as caras — Arthur disse, com um sorriso de deboche.
Eu tentei dar um passo para trás, mas Gabriel e Thales já estavam em pé, bloqueando a única saída.
— Vai correr pra onde, bicha? — Thales cuspiu, e sua voz se arrastou, cheia de desprezo.
— Que surpresinha. O "nerd" da escola, sempre com a cara de quem se acha o máximo. — Gabriel riu, a risada gélida no ar.
Meu coração começou a bater mais forte, mas não era de excitação. Era de pânico. Eu sabia o que vinha a seguir, e a única coisa que eu queria era desaparecer, sumir dali.
Arthur se aproximou, seus passos lentos, como se estivesse se divertindo com minha ansiedade.
— Você pensa que vai ser diferente, né? Que pode sair por aí, dando uma de bonzão. Mas a gente sabe quem você realmente é… — Ele deu um sorriso cruel, olhando para mim como se fosse um predador observando sua presa.
Antes que eu pudesse reagir, Arthur empurrou meu peito com força, me fazendo tropeçar para trás, quase caindo no chão.
— Você acha que pode ser quem você quiser? Ficar desfilando por aí como se ninguém fosse te dar um toque? — Gabriel se adiantou e me acertou com um soco no estômago.
A dor foi tão intensa que mal consegui respirar. Um grito ficou preso na minha garganta, mas ele não saiu. Só o ar parecia faltar.
Eu tentei levantar, mas Thales me empurrou de volta para o chão. O impacto fez meu corpo se contorcer.
Eu queria gritar, pedir ajuda, mas as palavras ficaram presas dentro de mim, como se eu fosse incapaz de me expressar. A única coisa que eu sentia era uma dor crescente, um peso esmagador que não vinha só do físico, mas de tudo o que me consumia por dentro.
— Você se acha tão importante, Pedro… Mas é só uma bichinha como todas as outras. — Arthur cuspiu perto de mim, sua voz era veneno.
Gabriel se aproximou novamente, e antes que eu pudesse tentar algo, ele me acertou com um soco no rosto, fazendo minha visão tremer. O mundo girava. A dor era tão insuportável que eu não conseguia mais me concentrar.
— Ninguém te quer por aqui — Thales gritou, e as palavras foram como facadas.
Eu não conseguia mais resistir. Meu corpo parecia estar em colapso, e a dor, tanto física quanto emocional, estava me esmagando.
— Ninguém vai te salvar, Pedro. Ninguém. — As palavras de Gabriel ecoaram na minha mente, enquanto tudo ao meu redor começava a escurecer.
Eu perdi a força para me manter em pé, para lutar contra eles. Perdi a força até mesmo para gritar. Sinto uma pancada na cabeça e então, tudo ficou em silêncio. O som das risadas, os insultos, tudo desapareceu. Só restava a dor, o vazio e a escuridão.
Eu estava sozinho.
Eu não sabia quanto tempo fiquei ali, no chão, sem saber o que acontecia. Meus olhos estavam fechados, mas a dor ainda parecia viva. Sentia meu corpo pesado, como se estivesse enterrado em algum lugar profundo.
Tudo ao meu redor estava em silêncio, como se o mundo tivesse desacelerado, tirado de mim qualquer noção de tempo. Eu só queria acordar, abrir os olhos e descobrir que era tudo um pesadelo. Mas, quando finalmente tentei me mover, uma onda de dor tomou conta de mim, e a única coisa que eu consegui fazer foi fechar os olhos novamente.
A última coisa que ouvi foi uma vozEu acordei com a sensação de estar flutuando, como se meu corpo não fosse mais meu. A dor era uma constante, mas algo estava diferente. Não estava mais no parque, não estava mais sendo golpeado. A sensação de estar sendo cuidado me envolveu, mas também trouxe uma sensação de estranhamento.
Quando abri os olhos, o lugar estava difuso, mas logo percebi que não estava sozinho. Eu estava em um ambiente estranho, com luzes fluorescentes e um cheiro característico de desinfetante. A cama onde eu estava parecia confortável, mas a dor... a dor me lembrou de tudo o que havia acontecido.
E foi então que vi uma senhora ao meu lado. Ela tinha os olhos gentis, com um semblante de preocupação que não conseguia disfarçar. Seu rosto estava marcado pelo tempo, mas o sorriso que ela me deu era acolhedor.
— Você está acordando, querido? — ela perguntou com uma voz suave, quase como se estivesse falando para uma criança.
Eu tentei falar, mas minha garganta estava seca, e minha cabeça parecia pesar toneladas.
— Onde estou? — consegui perguntar com esforço.
— Está tudo bem, você está na UPA. Você tava caído no parque, por isso liguei pro SAMU. Você foi trazido para cá e já foi medicado — explicou ela, passando uma mão suave pelo meu braço. — Está um pouco machucado, mas nada grave.
A lembrança de tudo o que aconteceu veio como uma onda esmagadora. Eu me lembrei de como caí no chão, de como os socos e os xingamentos se misturaram em um turbilhão de dor e humilhação.
— Você estava muito machucado, querido. Mas agora, está tudo bem. Vai melhorar — ela disse, com um sorriso tranquilizador, notando minha aflição.
Ela me ajudou a se sentar, e foi então que percebi o curativo em meu rosto, onde o soco de Gabriel havia me atingido. Olhei para as mãos dela, que seguravam com firmeza uma toalha, enxugando a testa suada.
O mundo parecia meio nebuloso, como se eu estivesse fora de mim mesmo. Mas sabia que precisava sair dali, precisava voltar para casa, para meu pai... ou para o vazio que sempre parecia me cercar.
Quando me senti um pouco mais forte, a senhora me ajudou a levantar. Ela chamou a enfermeira e, antes que eu pudesse perguntar mais, ela já estava organizando minha saída, me acompanhando até a recepção.
Fui informado que, por causa das lesões menores, não precisaria de internação, mas deveria descansar.
Após um tempo que pareceu um borrão, eu estava finalmente de volta à rua. A senhora me ajudou a pegar um táxi e, após pagar a conta, pediu para que eu cuidasse de mim.
O táxi me levou até minha casa. Quando cheguei, meu corpo estava exausto, mas a mente ainda estava em chamas, girando em torno do que tinha acontecido, do que estava acontecendo, de tudo que não conseguia entender.
Ao abrir a porta, uma sensação estranha tomou conta de mim. O cheiro de casa vazia e a certeza de que não havia ninguém ali me envolveu de forma quase sufocante.
Eu não sabia o que esperar agora. Não sabia o que fazer com os sentimentos misturados. Não sabia se o que acontecera naquele parque teria alguma explicação.
Mas, naquele momento, o que eu mais queria era desaparecer.
Fechei a porta devagar e caminhei até o meu quarto, onde deixei meu corpo cair na cama. O curativo no rosto ainda doía um pouco, mas era a menor das minhas preocupações. Eu só queria descansar, mesmo que fosse por um instante.
A sensação de abandono, de solidão, apertava o meu peito, mas estava acostumado. E, por mais que eu tentasse escapar daquilo, eu sabia que não conseguiria.
A escuridão que eu tanto temia estava dentro de mim, e eu não sabia como afastá-la.
Acordei com o corpo pesado, a dor no rosto ainda pulsando, mas uma sensação de vazio maior do que tudo. A luz fraca do fim da tarde entrava pela janela e eu estava deitado, tentando afastar a imagem do que aconteceu no parque. O curativo no meu rosto me lembrava a brutalidade que sofri, mas eu sabia que não podia ficar ali, enrolado nos lençóis, esperando que a dor desaparecesse por conta própria.
Levantei-me com dificuldade, as pernas tremendo um pouco. O reflexo no espelho me deu um choque imediato. Meu rosto estava diferente. O curativo no lado esquerdo parecia gigante, uma marca da violência que eu havia sofrido. Mas, por mais que isso me incomodasse, eu sabia que não podia deixar aquilo me parar. Não podia simplesmente ficar em casa. Eu precisava ir para a escola no dia seguinte.
Balancei a cabeça, tentando afastar os pensamentos e focar no que estava diante de mim. O estômago roncou, e só então percebi que estava com fome. Fui até a cozinha, liguei o fogão e peguei a frigideira. Fritar um ovo era a coisa mais simples, e a simplicidade naquele momento parecia a única coisa que eu poderia controlar.
Enquanto o óleo esquentava, pensei na escola. No quanto eu não queria perder mais um dia. Meus pensamentos começaram a girar sobre como iria chegar lá com o curativo no rosto, como os outros iam me olhar, como as palavras que eles iam dizer iam me atingir. A vergonha já era parte de mim, mas no fundo, eu sabia que teria que enfrentar.
A casca do ovo quebrei com cuidado, e, ao colocar na frigideira, o som familiar me deu uma sensação de normalidade. Era ridículo, eu sabia, mas um ovo frito com pão era o tipo de coisa que sempre me dava um pouco de conforto. Eu não queria mais pensar no que havia acontecido. Não queria mais lembrar do parque, dos socos, dos xingamentos. Só queria que o dia seguinte fosse menos pesado.
Quando o ovo ficou pronto, eu coloquei na fatia de pão e comi rápido, sem prazer. A sensação de ter comida no estômago era reconfortante, mas não fazia a dor desaparecer. Não a dor física, nem a dor emocional. Tudo parecia ser uma mistura de angústia e exaustão, e a única coisa que me restava era continuar. Ir para a escola. Enfrentar os olhares, as palavras, o peso das expectativas de todos, inclusive as minhas.
Depois de terminar de comer, me sentei à mesa por um tempo, observando a casa vazia. Fui até o espelho de novo, tentando ajeitar o curativo no meu rosto. O reflexo de alguém que estava tentando parecer normal, tentando ser forte, me encarava de volta. Era assim que eu teria que ir. Não podia voltar atrás.
E assim, com o coração apertado e a mente cheia de dúvidas, comecei a me preparar para o dia seguinte, ciente de que o pior não havia passado.
Continua...