Samuel era um cara de bem com a vida. Economista de mão cheia, estava no esplendor de seus 50 anos, completando bodas de prata com a esposa, e prestes a casar sua filha primogênita. Nunca teve nada a reclamar da vida, a não ser o distanciamento entre ele e seu pai, os dois nunca de deram lá muito bem, mas também não chegaram a deixar de se falarem, terem rusgas, nada disso. Tinham visões de mundo contrastantes apenas. Seus pais se divorciaram cerca de quinze anos atrás, após uma relação conturbada. Sua mãe, dona Lourdes, era aquela mulher guerreira, que sempre fez tudo pela família, e a partir de certa idade começa a cuidar mais da saúde, viajar e curtir um pouco após anos de trabalho e dedicação doméstica. Estava com 70 anos, aposentada, com boa saúde e aparência, fazia pilates regularmente, e costurava como hobby.
No entanto, uma notícia iria balançar a vida de Samuel e família. Ele recebeu uma ligação a respeito de um acidente de ônibus, que retornava de uma excursão. Dona Lourdes estava no veículo, mas não sofreu ferimentos graves. Porém, o trauma gerado pelo capotamento teve consequências.
- Como está minha mãe, doutor???
- Bem... Samuel, seu nome né? Senhora Lourdes não teve nenhuma grave fratura, apenas algumas escoriações, e o estado clínico dela é bom, estável. Ela deu muita sorte, muita mesmo. Porém, o acidente causou um choque cerebral e atingiu o hipocampo. Entenda, ela não teve traumatismos ou danos neurológicos. Ela sofreu uma reversão memorial, algo raríssimo de acontecer. Temporariamente, ela não terá nenhuma noção do tempo presente, ou seja, o susto de vivenciar o acidente foi tão grande que ela não fará qualquer associação à vida atual, ou de alguns anos pra cá. Muito provavelmente, ela vai experenciar por alguns dias um momento muito especial e particular de sua vida, e aí não sabemos que momento será esse. Pode ser seu nascimento, o casamento, ou outra situação da juventude. Pela minha experiencia, dificilmente as pessoas reverberam para situações pós 25 anos de idade, que é quando as responsabilidades aumentam e ocorrem muitos escapismos, excessos, consumo de coisas que dão prazer, etc.
- Puxa! Isso dura quanto tempo???
- Entre 7 e 10 dias, felizmente não dura tanto. Após esse período, ela retornará ao normal.
- Deixa eu entender... durante esses dias ela viverá como se fosse uma mocinha, é isso?
- Não necessariamente. A memória dela a levará a momentos do passado, que pode ser aos 18, vinte e poucos anos. Aí depende de que período ela recordará com mais afinco, não posso prever. Um exemplo: se durante um tempo ela adorava andar de bicicleta, ela perguntará sobre bikes, vai querer andar em uma e falará de lugares que ela ia pedalando, algo do tipo. O que recomendo é: não a force a lembrar da vida atual. Isso poderá confundi-la ainda mais e retardará o retorno à normalidade.
Samuel teve que se resignar com esse diagnóstico, bem menos grave, já que o acidente deixou muitos feridos, alguns com gravidade. Não parecia algo que traria muitos transtornos. Seria até curioso saber que período ela lembraria com tanto gosto.
Durante a recuperação, ela ficou na casa dele, aos cuidados da sua esposa, Milena, e da empregada que já trabalhava com ela. Nos primeiros dias, ela ficava muito calada, mas nos dias seguintes ficou perguntando sobre uma revista que estava procurando.
- Moça (falando com a nora), estou procurando uma revistinha... você viu por aí?
- Me diga o tipo da revista, Lurdinha.
- Bem, é... deixa pra lá
- Pode falar, quem sabe encontro na banca?
- Não, não... na banca não se acha. Eu comprei na rua, num homem que vendia livros.
- Era sobre o que?
- Deixa pra lá, já disse!
Milena comentou com Samuel. Parecia que ela colecionava revistas em quadrinhos ou algo do tipo pra se lembrar dessa fase. Compraram várias pra ela ler, mas ela nem deu importância. Foi então que se deram conta: ela disse que não vendia na banca, então... era alguma revista proibida?
Foi então que num dia Lourdes, muito triste, falou “puxa, queria tanto ler o Januário”.
- Quem era, mã... quer dizer, Lourdinha? Esse Januário?
- Não é da sua conta! Eu lhe conheço?
- Tudo bem, desculpa.
Ele então passou a pesquisar sobre algum quadrinista chamado Januário, mas não encontrou nada na internet.
- Que estranho... não há nada sobre esse cara em lugar nenhum.
Perguntou ao pai, mas este não tinha nem ideia. Foi ao bairro onde os pais moraram quando se casaram procurar alguma evidência de um vendedor de rua que comercializava revistas e livros, mas nada encontrou. O jeito era esperar dona Lourdes soltar mais alguma pista. Chegando em casa, encontrou a esposa toda constrangida.
- O que foi, Milena? Aconteceu alguma coisa com a mamãe??
- Samuca... olha, vou ser verdadeira. Dona Lourdes tava bem estranha hoje. Ela... não sei como falar isso com você, mas tenho que ser verdadeira: ela estava se masturbando agora a pouco e falando um monte de obscenidades!
- Puta merda!!!
- Tem mais: ela falava pra... nossa, que horrível, ela... dizia... desculpa, Samuca... mas ela falava “mete esse rolão, acaba comigo”.
- Santo Deus!!!
- Olha... me parece que ela tá reproduzindo algo, talvez. Então, acredito quea revistinha a qual ela se referia era de sacanagem!!
- Bingo...
Foi então que Samuel voltou às pesquisas mais apuradas e parecia que tinha encontrado algo.
“O ex-técnico de futebol Frederico Mogabê, deu entrevista ao Portal “Oh, Yes” e revelou que tentou a carreira de quadrinista pornô. “Era fã de Carlos Zéfiro”. Ele chegou a ser preso pelos militares após comercializar, no início dos anos 1970, algumas historinhas de sacanagem, como se dizia na época. Ele tinha o codinome de Januário Porfírio”.
- Caramba... Milena, chega aqui!!
- Olha só... só pode ser ele, o Januário que ela se referiu.
- Era ele quem vendia essas revistas... Acho que agora tudo começa a fazer sentido.
Retornou à Colina Dourada, bairro onde ele nasceu e morou até os seis anos de idade procurar alguma pista. O tal Januário, morava em outro estado e já idoso. Mas poderia encontrar alguém que o conheceu. A questão era: por que sua mãe estava imersa nesse período durante seu problema cerebral?
Conversou com várias pessoas, até encontrar o dono de um supermercado.
- Tinha sim um rapaz que vendia livros por aqui. Mas por que essa procura? Isso tem mais de 50 anos!
- Bem, é que minha mãe tem passado por uma demência passageira e falou muito sobre esse vendedor. Ele vendia uma revistas proibidas, não é isso?
- Não sei de nada, nunca comprei nada na mão dele. Mas soube que ele foi preso pelos militares naquela época, então, alguma coisa subversiva ele devia vender sim.
- O senhor sempre morou aqui?
- Sim. Aqui cresci, trabalhei muito, e consegui progredir.
- Você deve ter conhecido meus pais. Ribamar e Maria de Lourdes. Ele era chamado de Riba e ela de Lurdinha.
- Hum, não me recordo. Eu trabalhava o tempo inteiro, topava com um e outro, lidava com um público grande. Conheci algumas pessoas, mas a maioria ou já morreu ou não mora mais aqui.
- Eu tenho uma foto antiga deles aqui no celular.
Samuel mostrou as fotos. O senhor pareceu não ter reconhecido, apesar de ter feito uma expressão de que talvez tivesse lembrado.
- Não me parecem estranhos, mas como eu disse, não tive muitas ligações pessoais com quase ninguém aqui, era tudo a nível de trabalho. Bem, não posso lhe ajudar mais do que isso.
Samuel avançou na sua busca em saber a ligação da mãe com aquele autor desconhecido e suas histórias. Com muita procura, encontrou duas historinhas de Januário: “A casada e o verdureiro” e “a casada, o verdureiro, e seu amigo”. Eram contos ilustrados com cenas de sexo explícito, palavrões aos montes, pornografia pura. Será mesmo que sua mãe lia isso??? Ele não conseguia imaginar uma mulher que malmente arrotava quando acompanhada de alguém e odiava termos chulos lendo algo do tipo.
Dona Lourdes conversava sobre coisas do passado, mas não mais tocou no assunto da revista. Os dias avançavam e ela estava mais disposta. Após uma avaliação médica, o quadro estava positivo e brevemente ela recuperaria as funções normais.
Eis que o pai de Samuel passou mal e teve que ser internado para avaliar o que estava havendo. Após exames, foi constatado um tumor na próstata. Ele nunca fez o toque pois pra ele “era coisa de viado”. Precisava de uma cirurgia de emergência e Samuel acompanhou seu velho e doou sangue, caso precisasse. No dia seguinte, o médico o chamou na sala.
- Bem, o quadro de seu pai é preocupante, mas ele está estável. Lhe chamei aqui por outro motivo, e esse vai ser complicado de lhe passar.
- Pode falar, doutor, estou preparado para o pior.
- Bom... você nem imagina o que seja...
- Doutor, por favor, sem enrolação!
- Ok... meio difícil isso, não me recordo de ter passado por essa situação. Bem, você fez uma doação de sangue e como protocolo, checamos a compatibilidade. Receio que agora vem a notícia de impacto...
- Seja claro... foi descoberto algo no meu sangue que indique uma doença grave? Estou com alguma patologia??
- Você não entendeu, não é nada disso, está saudável. Estou falando que seus dados genéticos não bateram com seu Ribamar...
- O que??!! Quer dizer que...
- Ele não é seu pai biológico!
- COMO É QUE É???????
(continua...)