Escrito em Azul - Capítulo 31
Capitulo 31
(Encontro com o passado)
Anna-Lú acordou com o som gritante do despertador. Chegara à fazenda antecipadamente, em parte para deixar tudo pronto para a chegada do restante da equipe e em parte por querer ficar longe de Carolina. Decidira vir após o cliente ter aprovado as escolhas para a gravação do comercial. Desde a noite do restaurante não conversara com Carolina, que não fora a Agência no dia seguinte. “A noite deve ter terminado muito boa”, pensava com ironia e também não conseguiria estar perto dela por muito tempo, daí a necessidade de fugir, sim esta era a palavra certa. Sentia-se indignada por ela ser tão hipócrita, ao menos era isso que chegara a conclusão. “Acusou-a para depois correr para os braços do ex-noivo ou atual”, ela já não sabia. Também já não importava. Olhou em volta e seu quarto ainda continuava com o mesmo aspecto de quando era apenas uma adolescente. À direita da janela uma estante com os mais variados livros e também alguns CDs, à esquerda da mesma janela sua escrivaninha, totalmente organizada.
Observou a parede mais acima de sua cabeceira e admirou-se por seus antigos pôsteres ainda resistirem ali, bem mais envelhecidos agora. Sentiu-se levemente estranha com as lembranças que surgiram, riu-se de seus sonhos adolescentes e das diversas promessas de amor eterno, feitas a Fernanda, ali mesmo, naquela cama. Como era tola, pensava a seu respeito. Achava, na época, que Fernanda seria a mulher de sua vida, a que lhe daria filhos e teriam uma vidinha pacata e feliz. “É tão fácil apaixonar-se e muito mais fácil ainda iludir-se”, pensou ela já entrando no banheiro. Quando Anna-Lú chegou à cozinha naquela manhã, as sobrancelhas de sua mãe ergueram-se ao fita-la. Havia chegado durante a madrugada e achou melhor não acordar os pais. Tinha combinado de chegar apenas no fim da semana e ainda era quarta-feira.
— Que bom que está aqui, se soubesse que teríamos tão ilustre visita teria pedido para que colocassem a mesa da sala de jantar — disse a mãe de Anna-Lú levantando-se para abraça-la. — Finalmente lembrou que ainda tem mãe — concluiu sorrindo e depositando-lhe um beijo em sua face.
— Menos Dona Cecilia, sem drama tá legal, nem faz tanto tempo assim que nos vimos e, além disso, nos falamos quase todos os dias por telefone! E de qualquer modo sabes que sou a primeira a não me importar de comermos na cozinha — respondeu sorrindo de volta e caminhando até seu pai ainda nos braços da mãe.
— Bom dia Dr. Eduardo, quanto tempo! — exclamou com ironia antes de abraçar o pai.
— Tão cedo e já de pé? Alguém, por favor, devolva a minha filha! — exclamou sorrindo.
— Muito engraçado Dr. Eduardo! — Respondeu Anna-Lú aproximando-se para abraça-lo.
— Bom dia, Luluzinha, é bom tê-la conosco! — retrucou em tom divertido, pois sabia o quanto a filha detestava aquele apelido, abraçou-a em tempo de vê-la revirar os olhos e gargalhou.
— Ô pai, você nunca vai parar com isso, não é? Ninguém merece — disse e sentou-se a mesa.
— Sabes que é a única forma de me divertir com você, então, não. E depois, é tão bonitinho. Não entendo por que não gostas! — riu zombeteiro sendo acompanhado pela esposa. Anna-Lú novamente revirou os olhos e acompanhou-os nas risadas.
Embora aquela manhã houvesse começado com seus pensamentos novamente em Carolina, naquele momento, reunida com sua família Anna-Lú pôde sentir-se realmente feliz. De certa forma admirava a convivência dos pais. Ao longo dos anos era possível enxergar o quanto eles eram felizes um com o outro, seu pai, apesar de ser um homem muitas vezes duro, jamais havia deixado de ser romântico. Ele sempre fora aquele tipo de cara que espontaneamente demonstrava dedicação a sua esposa em qualquer lugar. Era do tipo que comprava um buquê de rosas ao voltar para casa, era do tipo que pegava na mão e convidava para um passeio a qualquer hora do dia ou da noite. No entanto, o mais importante é que todo esse amor era estendido a ela. Sempre deram o seu melhor por ela e, Anna-Lú tinha que admitir que nunca fora a filha que seus pais queriam que fosse, contudo eles sempre a respeitaram. E apesar dos atritos que tiveram quando assumira sua sexualidade eles jamais a maltrataram, pelo contrário, os atritos se davam justamente pela forma como Anna-Lú estava levando a vida, sem responsabilidade, e abatendo os corações das moças que se deixavam encantar por seu charme. Anna-Lú olhava para os pais, nostálgica, inundada por muitas lembranças. As melhores eram das grandes demonstrações de afeto que recebera deles durante toda sua vida ali, naquela casa, havia esquecido como é bom estar em casa. Havia esquecido que até os sabores eram inegavelmente melhores. Tudo feito no fogão à lenha, como seu pai fazia questão.
Após terminar o café resolveu sair para espairecer, mas para isso precisava de sua velha companheira. Uma Shadow, preta. Que muitas vezes fora motivo de dor de cabeça para os pais. A moto Custom pertencera ao avô de Anna-Lú, um homem um tanto excêntrico, que compartilhava com a neta a paixão por esses veículos, e para total desespero do filho Eduardo, deixara de herança para a neta esta, que era a mais querida de suas paixões. O pai de Anna-Lú conseguiu frear a vontade da filha até os 14 anos, depois disso, não pôde mais contê-la. Aos 15 anos Anna-Lú passou viver diariamente em cima daquela geringonça velha, como seu pai chamava a motocicleta, após longas batalhas travadas com a filha sobre isso, acabou desistindo, ela fora irritantemente irredutível. Anna-Lú sorria ao divagar por suas lembranças enquanto dava a volta na casa atravessando o enorme jardim de sua mãe, caminhou até o celeiro onde o Sr. Inácio, o jardineiro, protegia fielmente sua preciosidade.
— Luluzinha, que surpresa boa e que bom que está aqui! — exclamou o velho jardineiro largando os utensílios que usava para remexer a terra assim que a avistou e levantou-se para cumprimenta-la abrindo um grande sorriso, Anna-Lú teve vontade de revirar os olhos por conta do apelidozinho irritante. Mais um que não conseguira persuadir a chama-la por outro nome, pensava.
— Senti saudades Inácio! — falou apertando o velho homem em um caloroso abraço e beijou suas bochechas antes de soltá-lo.
— Eu também senti menina. Esqueceu-se dos pobres e agora só queres saber da cidade grande! — disse fingindo drama.
— Não seja dramático velhinho, eu jamais me esqueceria de você, até porque sou interesseira, não sabes? Você é o cara mais rico que eu conheço. O resto dos caras tem apenas dinheiro, mas você meu velho amigo, tem muito mais que isso, porque você tem amor no coração e sabedoria pra viver — falou sorrindo dando-lhe um leve escorão no ombro.
— Sei bem como és interesseira e até já sei o que queres de mim! Vamos por aqui — falou sorrindo enquanto caminhavam para dentro do celeiro.
O velho jardineiro puxou a lona que cobria a antiga companheira de Anna-Lú fazendo seus olhos brilharem de excitação. Estava tão brilhante quanto se lembrava. Inácio realmente cumprira a promessa de cuidá-la. Caminhou vagarosamente até sua ‘pequena paixão’, como gostava de falar, a moto fora comprada por seu avô no início da década de 90 e ainda assim sua beleza continuava a mesma, garfo alongado, rodas raiadas, e um motor muito cromado. Correu as mãos pelo metal e seguiu por toda a extensão do assento de couro preto legítimo, que o avô mandara colocar, apertou os olhos, abobalhada, apenas por imaginar o vento em seu rosto. Lembrou-se do avô e do quanto ficara feliz quando aos dez anos ele a convidou para uma volta, lembrou-se de sentir o vento em seus cabelos, e da escapada em direção à grandeza das estradas de terra nas redondezas da fazenda, a sensação fora incomparável. A partir de então, não houve mais jeito, já estava apaixonada pelos veículos de duas rodas, tudo culpa de seu avô, como diria seu pai, e foi este grande homem quem a ensinou a pilotar. Uma súbita tristeza apoderou-se de seu semblante e seus olhos umedeceram, pois quase um ano depois dessa mágica experiência seu avô falecera.
— Meu velho amigo Garcia teria orgulho de você Luluzinha — disse o velho homem como se a decifrasse e soubesse onde os pensamentos dela foram parar. Abraçou-a com carinho e compartilhando com ela aquela melancolia, Anna-Lú afagou-se naquele abraço e deixou que as lágrimas rolassem por seu rosto. Não foram lágrimas de tristeza, mas sim lágrimas de saudades. Uma saudade que jamais a abandonaria e ao mesmo tempo lhe daria forças sempre que precisasse. Houve uma pausa, durante a qual Anna-Lú aproveitou aquele abraço cheio de carinho e lembranças.
— Então? — perguntou o velho jardineiro assim que a sentiu mais calma. Anna-Lú ainda soltou um longo suspiro antes de desvencilhar-se daqueles braços e responder.
— Vejamos como essa belezinha ainda se sai — sorriu.
— Claro! — retribuiu o sorriso. — O tanque está cheio e coloquei-a para funcionar ontem, e não se preocupe ainda não sou vidente, seus pais me avisaram que você viria e achei que gostaria dela prontinha pra você.
— Eu já disse que te amo? — abriu um largo sorriso. —Se não, eu digo agora... Eu te amo você é o melhor — disse já montando na moto.
— Não está esquecendo-se de nada mocinha? — questionou estendendo o capacete.
— E você me deixa esquecer? — comentou revirando os olhos. Anna-Lú acomodou os óculos escuros, o capacete, deixou a viseira levantada, deu partida e o ronco do motor foi música para os seus ouvidos.
Sentir o vento em seu rosto então, foi como revigorar as forças, atravessou o portão principal da fazenda e pegou o asfalto da estrada principal, mas não por muito tempo, à medida que se distanciava da fazenda sentia-se mais leve, tomou os antigos ramais ainda de terra batida e seguiu com a mesma sensação, a poeira levantada por sua passagem era vista pelo retrovisor e seu sorriso não podia ser mais espontâneo, sentia falta disso também. De forma inconsciente adotou um ramal que levava diretamente ao lago em que passara praticamente toda sua infância e boa parte de sua adolescência. Era onde a galera daquela época costumava se reunir aos fins de semana, isso quando não estavam no clube. Seguiu pela planície as margens do lago e estacionou ao lado de uma antiga estradinha de terra, um dos acessos àquele lugar. Desceu da moto, retirou o capacete e olhou em volta observando a vegetação que circundava o lago para logo em seguida contemplá-lo em sua imensidão. Inspirou e expirou lentamente sentindo todo o reconforto do ar puro invadir seus pulmões. A sensação era tonificante.
Após algum tempo daquele exercício de respiração acomodou o capacete num dos retrovisores e empurrou sua moto para a sombra de uma árvore, próximo ao inicio de uma trilha que, por dentro da vegetação levava até o outro lado, onde se podia encontrar uma pequena corredeira formada entre as grandes pedras naquela parte do lago. Anna-Lú costumava dizer que era seu lugar favorito, era para onde corria sempre que precisava pensar. Andou devagar pela trilha, a manhã estava ensolarada, típica daquela época do ano. No entanto, as densas copas das árvores no entorno da trilha lhe serviam de abrigo contra os raios do sol. Alguns minutos depois finalmente saiu das sombras das árvores e deparou com o conjunto de pedras que não conseguiram deter o curso das águas do rio, que cortava aquela região, ao desaguarem ali compondo o maravilhoso Lago à sua frente. Não podendo resistir nem mais um minuto tirou a jaqueta de couro preta, desfez os laços do cadarço e descalçou as botas marrons jogando tudo num canto da margem, dobrou as bainhas da calça e afundou os pés naquela água fria e cristalina e escalou algumas pedras menores, buscando equilíbrio devido à força da água, até chegar a uma pedra grande quase no meio naquela parte do rio, e sentar sob a sombra projetada por uma das árvores altas na outra margem.
Seus pensamentos logo mergulharam no presente, depois no futuro e principalmente no passado. Ali meditou por alguns instantes, e seu corpo vibrou num estremecimento de emoção. Pensar em sua vida, em tudo que já lhe acontecera era tão emocionalmente desgastante que chegava a criar um bolo na garganta. Mas, por outro lado é exatamente por esse conjunto de acontecimentos, por ensaio e erro que tudo um dia se acerta, pensava. Por mais que Carolina não saísse de seus pensamentos, estar de volta inevitavelmente trouxe à tona as lembranças de Fernanda. Era a primeira vez que pisava naquele lugar desde que resolvera ir embora. Especialmente ali, as lembranças eram fortes demais. O primeiro beijo, a primeira declaração, as brincadeiras, tudo ali tinha o sorriso dela, e este sempre fora o que mais encantara Anna-Lú. O som das gargalhadas parecia até real, aquele fora o refugio de duas garotas adolescentes e apaixonadas por muito tempo. Até mesmo antes de descobrirem essa paixão.
Mas, assim como as lembranças boas, as ruins vieram com a mesma intensidade. O que mais decepcionara Anna-Lú não fora a mentira ou a traição, mas sim a covardia. Fernanda deixou que o medo do que as pessoas iriam pensar fosse maior que o amor que haviam cultivado, e isso fora o que mais destroçou seu coração. Um soluço seguido de um choro triste e intenso sacudiu o corpo de Anna-Lú sem que ela pudesse evitar. Parecia que tudo estava a se repetir em sua vida. Somente isso explicaria as atitudes de Carolina. Passou alguns minutos entregando-se aqueles pensamentos dolorosos e as suas frustrações. No entanto, desdenhando da pena que sentia de si mesma limpou as lagrimas que banharam seu rosto nas mangas de sua camisa e com um menear de cabeça tentava afastar a tristeza que se instalara em sua mente. Como resultado de suas reflexões pensou que o melhor seria voltar à fazenda e enfiar-se no quarto, mas ao contemplar o sol e a imensa beleza daquele lugar, mudou de ideia. Ainda era cedo e o dia, apesar de sua alma nublada, anunciava-se cheio de possibilidades. Nunca fora mesmo de se esconder. Fosse como fosse, um súbito pensamento lhe invadiu a cabeça. Talvez a vida estivesse lhe permitindo acertar suas contas com aquele lugar.
Atravessou pelas pedras novamente e ao chegar à margem secou os pés com a flanela que havia levado consigo, recolocou as botas e a jaqueta, e fez o caminho de volta. Respirou fundo e montou em sua moto, pegou a estradinha de terra e depois a estrada principal chegando ao centro, daquela já nem tão pequena cidade, em poucos minutos. Estacionou no único lugar que ainda lhe era familiar, a Lanchonete Central, sempre achara que esse nome soava extremamente redundante, especialmente devido a sua localização. Exatamente no centro da cidade. Pela primeira vez, Anna-Lú fora obrigada a admirar aquele lugar, mais para espantar seus pensamentos do que por outro motivo, distraiu-se observando as construções que agora remodelavam a paisagem, fazia tanto tempo que não pisava ali. E isto lhe pareceu como se nunca antes houvesse estado naquele lugar. Sentia-se um tanto estranha com isso.
Endireitou os cabelos e a jaqueta, acomodou o capacete na altura do cotovelo esquerdo e pôs as chaves no bolso antes de entrar. Agradeceu mentalmente por não ter esquecido a carteira, pois a fome já dava sinais de existência, saiu tão cedo que o café já evaporara de seu organismo. Dirigiu-se a porta principal e ao abrir quase esbarrou em uma senhora que estava de saída, tanto uma como a outra se desarranjaram em desculpas e Anna-Lú fez questão de segurar a porta para que a senhora saísse. Finalmente, Anna-Lú pôde observar o interior do estabelecimento com mais atenção, apesar de a fachada ainda conservar o estilo da qual ela se lembrava, o interior estava totalmente diferente. Olhou ao redor e não reconheceu ninguém. Andou até o caixa e era impossível não sentir-se ser observada, ela destoava completamente das pessoas que frequentavam o local, notava-se de longe que não era da cidade. Pediu um café e alguns pães de queijo, pagou e virou-se dando de cara com alguém totalmente indesejado. Sua surpresa não poderia ser maior e ela engoliu em seco. Os olhares duelaram silenciosamente até a pessoa resolver quebrar o silêncio.
— Oi NaLú, como vai? — disse um pouco arquejante.
— Poderia estar melhor, com licença — respondeu recuperando o ar irônico e pedindo passagem.
— Quando será que isso vai deixar de ser tão estranho? — perguntou antes que Anna-Lú pudesse se afastar.
— O que é estranho, Fernanda? — perguntou sem virar-se para ela. “Afinal, quais as chances de encontrar sua ex do mal, logo no primeiro dia?! Céus!”, Anna-Lú perguntava-se.
— Nós duas? Nos encontrarmos? Vermo-nos? — respondeu com outras perguntas.
— Acho que NUNCA, é uma resposta bem razoável — respondeu e virou-se estreitando os olhos e lhe lançando um sorriso forçado.
Sentou-se para esperar em uma das mesas ao fundo e de costas para a entrada. Nem bem se acomodou e Fernanda já estava outra vez em sua frente sem nem ao menos pedir ou ser convidada.
— Ah, qual é? O que você ainda quer comigo? — questionou um pouco ríspida.
— Calma. Não precisas de tratar-me tão mal assim, sei que não tenho direito de pedir nada...
— Ainda bem que sabes — interrompeu.
— também sei que queres me irritar — suspirou —, mas isso não vai funcionar. Preciso conversar com você, é tudo que eu peço NaLú, por favor me dá uma oportunidade! — disse com voz suplicante.
— Creio que já tivemos nossa conversa — respondeu exasperada.
— Isso não é verdade e sabes disso, o que falamos foram coisas ruins uma pra outra. Olha só, não tenho mais tempo agora, mas me encontra no nosso lugar amanhã cedo, vou te esperar. Por favor! — pediu franzindo a testa. — Agora preciso ir — concluiu em um tom preocupado olhando para a entrada. Logo depois ela levantou-se e saiu apressadamente deixando Anna-Lú confusa e com uma sensação estranha no peito.
Enquanto delibava o que havia pedido ficou pensando no que Fernanda dissera, tinha proposto a si mesma que não iria encontra-la, mas algo a fez lembrar-se do próprio dilema com Carolina e toda a confusão que a trouxe até ali, e tudo pela falta de diálogo. Decidira então, dar a Fernanda a oportunidade de conversarem como pessoas civilizadas. Devia isso a si mesma. Não por ter esperanças de retomar o que um dia tiveram, pelo contrario, para que assim pudesse deixar essa cicatriz para trás de uma vez por todas. Seu coração agora tinha outra moradora e tão cedo não ficaria desocupado. Riu-se de sua pequena vida de novela. Chega a ser ridículo, pensava. Presa nesses pensamentos fora incapaz de perceber que não longe dali, através das vidraças era observada, por um olhar irado e ameaçador. Após degustar seu lanche voltou para a fazenda encontrando seu pai logo na entrada.
— Pensei que essa geringonça não existisse mais — falou com reprovação por ver Anna-Lú chegar naquele pesadelo de duas rodas, como costumava pensar a respeito da moto. Detestava que ela saísse por ai naquele meio de transporte.
Ela apenas balançou a cabeça e desmontou da moto. E seu pai não fazia ideia de como persuadi-la a não mais andar naquilo, por isso, suspirou e resolveu apenas ser condescendente.
— Então, como foi o passeio, Luluzinha?
— Revigorante! — respondeu ela, depois de revirar os olhos. — Onde está a mamãe?
— Está na cozinha ajudando a Marta com o almoço.
— Nossa! Mamãe não consegue mesmo ficar parada, não é?! — disse sorrindo e acompanhando o pai para dentro do casarão.
— Não mesmo, você conhece sua mãe — sorriu com ar de apaixonado para filha, era assim que ele sorria todas as vezes que falava da esposa. — Mas, aproveitando isso, quero que venhas ao escritório, preciso falar com você sobre alguns assuntos da Agência. Vamos? — perguntou. E Anna-Lú apenas anuiu concordando.
Anna-Lú entrou no casarão, acompanhada pelo pai, e já falavam sobre os negócios, mas não pôde deixar de notar o aroma que invadia toda a casa, tão pouco fora capaz de não salivar, e riu-se da vontade que tivera de invadir a cozinha e sair vasculhando todas as panelas e provar daquele manjar, como fazia quando era apenas uma adolescente insensata, não que ela já fosse totalmente sensata, pensou e riu-se de sua análise. Passaram pela sala de estar e encontram-na vazia. Pelo jeito a mãe continuava na cozinha, pensou ela. Deixou que o pai seguisse para o escritório e avisou que logo estaria lá, entrou na cozinha e aquele aroma magnifico se intensificou, não demorou em que sua mãe e Marta aparecessem em seu campo de visão. A velha cozinheira como de costume mexendo em suas panelas e Dona Cecilia picando alguns legumes, ao que parecia. Anna-Lú parou um instante para admirar a descontração das duas mulheres e logo se aproximou para dar um abraço em cada uma.
— Oi filha, que saudade, como está bonita, pensei que não viesse falar comigo — falou a pequena senhora fazendo beiço.
— Como eu poderia fazer uma desonra dessas, jamais Martinha e de qualquer jeito viria aqui nem que fosse pra bisbilhotar suas panelas — respondeu Anna-Lú sorrindo e a abraçando logo em seguida. Dona Marta era tão pequena que Anna-Lú às vezes tinha a impressão que se a abraçasse mais forte a quebraria ao meio, no entanto, ao mesmo tempo o abraço era tão aconchegante que se perderia nele por horas. Abraçou a mãe logo em seguida, para que ela não tivesse uma crise de ciúmes.
— Como foi o passeio meu amor? — perguntou a mãe estendendo um copo com água para Anna-Lú, que revirou os olhos por causa da mania de sua mãe em sempre insistir que ela bebesse bastante água.
— Foi bom mãe, muito bom mesmo — respondeu sorvendo um pouco da água.
— Que bom, filha, ah e antes que eu me esqueça, quando é que vou conhecer minha futura nora? — Anna-Lú quase engasgou com o restante do liquido que sorvia. Tossiu uma dezena de vezes antes de responder.
— A senhora sabe muito bem que você só teria uma nora se eu fosse comprometida e sabe mais ainda que essa não é a minha praia. Então eu já vou indo que o papai está me esperando no escritório — respondeu já andando e querendo se livrar das perguntas da mãe, a última coisa que queria nesse momento era falar sobre Carolina.
— Como é mesmo o nome dela? — sorridente a mãe perguntou ignorando tudo o que Anna-Lú dissera.
— Ah sim, lembrei, ela se chama Carolina não é? —Anna-Lú ouviu a mãe gritar enquanto já estava se distanciando da cozinha e como se não bastasse ainda pôde ouvir altas risadas vindas das duas mulheres na cozinha. Revirou os olhos. Era tão bom estar em casa, pensava ela com ironia.
Balançando a cabeça negativamente, seguiu para o escritório como havia prometido, e seu pai já a esperava. Tiveram uma longa reunião sobre o ultimo balanço da Agência e tomaram algumas decisões em conjunto. Anna-Lú tinha que admitir que, contratar Carolina fora uma ótima sacada, a empresa rendeu bem mais do que renderia se somente ela estivesse comandando tudo sozinha, até porque ela poderia ser muito inteligente e supercompetente, mas ainda não tinha o poder de ser onipresente. E, além disso, apesar de saber que apaixonar-se não estava em seus planos, os momentos com Carolina ainda era algo da qual não se arrependera. Era a primeira vez depois de anos que ela sentiu-se realmente completa. Pena que não fora capaz de conquista-la por completo, lamentava-se Anna-Lú. Ficou no escritório, sozinha, com a desculpa de ter que enviar alguns e-mails, mesmo depois de já haver terminado tudo o que tinha que fazer para esperar a equipe. Seu pai sequer desconfiou da atitude da filha, afinal ela sempre fora perfeccionista, então a deixou a vontade. Permaneceu ali até a hora do almoço, pois era onde tinha paz pra pensar e ninguém para enchê-la de perguntas. O almoço fora tranquilo e ajudou sua mente anuviar. Mas após, não pôde deixar de pensar no que realmente a incomodava. O pedido de Fernanda. Alegando cansaço enfiou-se no quarto e somente saiu para jantar e logo voltou para o seu “mausoléu”. Era assim que se sentia naquele momento, como se não pertencesse ao mundo, sentia-se exausta com todos os seus sentimentos conturbados. Novamente a noite fora longa e apesar do cansaço o sono não veio como o esperado, já que, tanto Carolina quanto Fernanda não lhe saiam da cabeça. E muito mais que cansada Anna-Lú sentia certa angústia ao pensar em Fernanda.
Acordou como num daqueles dias em que você acorda com aquela expectativa pairando no ar, uma impressão de que algo muito importante está prestes a acontecer. Levantou decidida. Nem sequer tomou seu café da manhã, sua ansiedade não lhe permitiu. Anna-Lú pegou sua moto e partiu para onde Fernanda havia marcado. A sensação era totalmente oposta a do dia anterior quando esteve ali naquele mesmo lugar. A agitação que sentia era latente e não era de um jeito bom, pensava. O mato ralo que cobria a trilha mostrava-se pisado, sinal de que ou Fernanda já estava ali ou alguém decidira visitar o rio no mesmo horário. Seguiu pela trilha ainda molhada do orvalho da manhã e alguns passos depois pôde enxergar uma silhueta feminina se formar a margem do rio, logo sua visão foi capaz de distinguir que era realmente Fernanda. Ela estava de costas e com as mãos enfiadas nos bolsos da camisa de moletom. Ao vê-la ali, Anna-Lú perguntou a si mesma se realmente aquela era uma boa ideia, no entanto, não daria para trás justamente nesse momento. Fernanda encontrava-se tão distraída que sequer percebeu a presença de Anna-Lú.
— Uma moeda pelo seu pensamento. Disse Anna-Lú postando-se ao lado de Fernanda.
— Que susto! — Exclamou elevando um pouco o tom de voz.
— Desculpe, não tive a intensão.
— Tudo bem, eu é que estava distraída demais — respondeu e Anna-Lú apenas assentiu. E ficaram caladas por uma fração de segundos que mais parecia uma eternidade para ambas.
— É como eu disse — Anna-Lú quebrou o silêncio constrangedor. — Nunca mais vai deixar de ser estranho.
— Pode até ser — concordou. Mas ainda bem que algumas coisas nunca mudam — respondeu Fernanda olhando de relance para Anna-Lú.
— Como assim? — Quis saber olhando nos olhos de Fernanda diretamente pela primeira vez desde que chegara.
— Você sempre dizia essa frase quando me pegava perdida em pensamentos, e ouvi-la agora foi como voltar àquela época — respondeu suspirando, devolvendo o olhar.
— Mas, infelizmente não podemos voltar no tempo e temos que conviver com as consequências de nossas escolhas — Anna-Lú resolveu alfinetar.
— Tens toda razão e, acho que mereço — Fernanda levantou os braços como em rendição ao terminar a frase.
— Bem, acho que não se trata de merecimento ou não, acho que está mais pra Lei de Causalidade, entende?
— Causa e Efeito, sério?! — Fernanda estava aliviada por não ver mais aquele olhar de decepção, que por tantos anos assombrara suas lembranças, mas apesar disso ela conseguia ver certa tristeza no olhar de Anna-Lú.
— É isso mesmo, eu não sou tão radical com esse pensamento, mas posso dizer que há muitas ocasiões em que certos efeitos são realmente ocasionados por um evento em particular, por uma tomada de decisão própria, por uma pisada de bola, sei lá. E é nisso que eu acredito, mas nós não viemos aqui pra filosofar, então vamos acabar logo com isso, eu estou aqui. Diz-me o que você quer?
— É engraçado você me fazer essa pergunta, o que eu quero! Acho que o que eu realmente quero já não está mais disponível para mim, perdi minha oportunidade há muito tempo — respondeu Fernanda com um semblante condoído por sua própria falta de coragem.
— Não vamos entrar nesse mérito, por favor! — Pediu Anna-Lú.
— Ok! Desculpe-me — respondeu parecendo constrangida.
— Tudo bem, na verdade o mérito talvez seja exatamente esse, só não quero que crie expectativas desnecessárias.
— Não se preocupe, como eu dizia, perdi minha oportunidade há algum tempo. Anna-Lú apenas assentiu e com um meneio de cabeça incentivou Fernanda a continuar.
— Eu ensaiei tantas vezes ter essa conversa e agora todas as palavras me somem da mente, mas o fato é que, devo-te uma explicação...
— Não me deves nada — Anna-Lú interrompeu. — E as explicações já perderam a validade nesta altura do campeonato.
— Pode até ser, diante de tudo o que passamos, mas ainda é um fardo pra mim, eu preciso dizer-te tudo o que houve, reconhecendo o quanto eu fui covarde. Não peço que me entendas, mas peço que ao menos tente e quem sabe talvez um dia me perdoe.
Anna-Lú cruzou os braços sem esboçar qualquer reação e Fernanda respirou profundamente antes de continuar.
— Como eu te disse, eu casei sem amor, o maior motivo para esse casamento acontecer foi a gravidez prematura. Porém, já era um acordo mais que acertado entre o meu pai e o pai do Gustavo. Descobri na época em que seu pai te mandou para aquele maldito acampamento, que o meu pai havia contraído dividas de jogo com o pai do Gustavo e que este prometeu não executar as dividas se... eu aceitasse namorar, noivar e casar com o Gustavo. Eu implorei ao meu pai pra não aceitar o acordo, pois eu jamais me casaria com o Gustavo. Mas, ele não me deu ouvidos e disse que eu teria que namorar e casar como ele queria ou então perderíamos o sítio e ficaríamos na rua. Meu pai me pressionou e eu acabei aceitando. Quando você voltou, eu não sabia o que fazer ou como contar-te, não era pra você ter descoberto daquela forma e eu me odiei por isso. Depois você não quis mais falar comigo e assumiu pra todo mundo sua opção, por isso meus pais me proibiram de chegar perto de você, pois na cabeça deles tu eras uma má influência. Na minha grande sabedoria de adolescente, achei melhor calar-me. Sofri horrores quando começastes a desfilar com várias garotas... uma a cada semana... isso doeu pra caramba! Já não aguentava mais e eu havia resolvido te procurar e pedir pra fugir com você...foi quando a bomba da gravidez explodiu no meu colo, fiquei sem chão e nossos pais resolveram adiantar o casamento. Achei que seria o mais sensato que meu filho tivesse um pai e uma mãe, por isso me vi obrigada a não contestar o casamento. Casei chorando de tristeza, raiva e revolta, não conseguia sorrir e na noite de núpcias não queria sequer que Gustavo me tocasse. Ele não aceitou muito bem meu comportamento e se embriagou. Chamou-me de vagabunda e de sapatão... Nessa noite descobri o porquê da obsessão dele comigo... Deferiu-me um tapa no rosto e empurrou-me totalmente transtornado... Acusou-me de estar pensando em você e disse que sempre soube do nosso envolvimento e que jamais aceitaria perder pra você, muito menos deixaria que eu ficasse com você, antes ele mataria a mim e a ti. E que se eu desistisse do casamento ou tentasse contar pra alguém o que ele havia feito eu teria sérios problemas... Eu e minha família. Tudo o que pude fazer naquela noite foi chorar convulsivamente encolhida em cima da cama. Calei-me outra vez... Por medo... Covardia... Receio de que ele cumprisse suas ameaças até porque a família dele era uma das mais ricas da região e exercia muita influência sobre a “justiça” local. Tu mesmo cansaste de comentar que os negócios da família dele eram tão escusos que o pai parecia mais um mercenário do quê um fazendeiro. Passei a tomar calmantes por conta própria para conseguir manter-me no lugar e também manter a gravidez... Meu filho era minha única esperança, mas o pai dele era o próprio demônio, principalmente quando me surpreendia chorando sozinha. Quando soube da tua partida, entrei em uma tristeza profunda que virou depressão, e a convivência com Gustavo piorou consideravelmente, ele passou a me bater com mais frequência e todo esse turbilhão emocional e físico me causou um aborto espontâneo depois do 4º mês de gravidez. Por esse motivo passei uns quatro meses na casa dos meus pais, Gustavo ia ver-me todos os dias, eu sentia medo dele, passei a estar retraída, mas ao menos ele não me batia mais. Entrei em pânico quando soube que teria que voltar para a casa que morávamos juntos, mas ele me prometeu que mudaria o comportamento se eu continuasse casada com ele e calada sobre tudo o que vinha acontecendo, caso contrário eu poderia até deixa-lo, mas ele cumpriria todas as ameaças que havia feito. Decidi que pelo bem dos meus pais eu continuaria casada com ele. Gustavo mudou radicalmente seu comportamento depois que voltei, e pra falar a verdade eu também... Sentia tanto medo dele que passei a ser a fiel e totalmente submissa esposa, jamais ousava confrontá-lo, e passei a fazer exatamente tudo conforme ele queria. E assim, estou a viver até hoje, ainda sinto muito medo, mas já andei conversando com um advogado, meu pai faleceu no ano passado e eu já não aguento mais essa vida de escravidão. Sabe que quando nos encontramos na capital há alguns anos só falei com você por insistência dele, ele queria me exibir como um troféu que ele ganhara de você e eu me senti muito envergonhada. Agora, estou articulando as escondidas com a ajuda de uma amiga, para me divorciar, estou tão exausta... — suspirou — Ele não pode supor que eu esteja fazendo tudo isso, ainda preciso esperar que as provas da agressividade dele, pois já fiz a denuncia e o exame de corpo de delito depois da última surra que ele me deu. Não contei a ninguém, até porque na frente das pessoas ele é um exemplo de bom homem. Quando conseguir eu irei vender o sítio e finalmente poderei partir com minha mãe. Mas, antes eu precisava tirar todo esse peso dos meus ombros, precisava contar-te tudo. Hoje eu entendo que se tivesse confiado em você e pedido ajuda, nossa história poderia ser diferente, mas como eu poderia saber? Eu era apenas uma adolescente insegura, cheia de receios e de virar chacota por gostar de uma menina, e que por isso achou melhor acatar as ordens dos pais. Eu sinto muito por tudo NaLú, sei que sofrestes tanto quanto eu. Espero sinceramente que um dia você me perdoe.
Fernanda terminou seu relato já com o rosto banhado por lagrimas. E Anna-Lú por sua vez jamais poderia supor que Fernanda tivesse passado por tamanho calvário, sua cabeça agora dava um giro de 3600 (graus). As lembranças mais dolorosas e mais felizes do relacionamento que tivera com Fernanda surgiam em pequeninos flashes diante de seus olhos. Sentiu-se tão idiota, por todas as vezes que crucificara Fernanda, por sentir raiva dela por tanto tempo e principalmente por nunca ter tido coragem de procura-la ou ao menos saber dela. A covarde de fato, era ela. Sentiu-se uma grande tosca, estupida e egoísta. Achava que Fernanda jamais mereceria seu perdão e, no entanto, agora tinha certeza que Fernanda é quem não deveria perdoa-la. Tão tola por olhar somente para seu próprio umbigo. Suas razões agora pareciam tão infantis e insignificantes que sentiu vergonha de si mesma. Não teve outra reação se não abraçar Fernanda com ternura, partilhando com ela toda a frustração que sentia por ter sido tão cruel. “Sim, eu havia sido cruel”, pensava. Afagou os longos cabelos enquanto sentia o chacoalhar do corpo que se derramava num choro convulsivo. Passaram longos minutos até que o corpo de Fernanda parasse de tremer. Afastaram-se.
— Está melhor?! — perguntou Anna-Lú segurando o rosto de Fernanda entre suas mãos.
— Sim! — respondeu esboçando um leve sorriso triste.
— Sim?!— As duas mulheres ouviram uma voz ecoar. — Não acham que está cedo demais pra um pedido de casamento? — Carolina surgiu de entre as árvores, perguntando com a voz carregada de ironia.