O Internato – XLIII
Capitulo quarenta e três
Funeral
Daniel
Olhava para ele o caixão. Seu rosto estava pálido e muito mais magro do que quando o vi da última vez a vários meses. Não podia ver seu corpo, pois estava em baixo de uma manta de flores brancas, mas quando minha mãe me disse que quando reconheceu o corpo, ele estava muito mais magro e pálido indicando que ele não se alimentava direito a um bom tempo. E eu sabia que ele estava abatido, pois da última vez que vi meu pai com vida ele não era mais o mesmo. Tinha o olhar cansado e fraco e já naquela época ele apresentava sinais de emagrecimento. Ele parecia triste e um pouco arrependido, mas nunca imaginei que ele tiraria a própria vida se enforcando com um lençol.
– Vamos sair um pouco daqui – Bernardo disse segurando minha mão – Ficar olhando para ele não vai te fazer bem.
Mas eu não queria sair dali. Queria olha-lo mais um pouco para ter alguma noção de como me sentia. Era difícil, pois desde que Bernardo me contou sobre seu falecimento no dia anterior, eu não sabia o que sentir. Deveria ficar triste de perder meu pai ou feliz por não ter mais que temer aquele monstro odioso.
Várias pessoas vieram até mim naquela manhã e me abraçaram dizendo o quanto estavam tristes pela minha perda e que eu deveria ser forte. Muitos tiveram a coragem de me dizer que Jorge Villela tinha sido uma ótima pessoa e um excelente oficial na aeronáutica. Não entendia o porquê de tantos elogios se a única palavra que vinha a minha mente para descreve-lo era covarde. Covarde por não ter enfrentado o pai que o bateu por ser homossexual. Covarde por odiar o Théo que tanto se assemelhava a ele quando criança. Covarde por não conseguir apoiar o filho gay e repetir a agressão que sofreu de seu pai. Covarde por viver uma vida dupla se relacionando com homens escondido. Covarde por Apontar uma arma para mim e dizer que me mataria e então mudar de ideia. Covarde por tirar a própria vida quando finalmente começou a pagar por tudo de ruim fez a Théo e a mim. Jorge Villela não era um ótimo pai e um excelente oficial. Jorge Villela era um covarde que teve medo de ser feliz.
Agora acho que o que sinto com sua morte é raiva. Raiva não e sim ódio, pois ele escolheu o caminho mais fácil outra vez. Ele nunca enfrentou nada difícil e sempre fugiu para não sofrer e do que isso adiantou? Viveu uma vida miserável e sem amor. Foi um homem cujos três filhos não tem uma pontada de orgulho sequer. Sei que em minha infância eu o idolatrava por ter sido um pai incrível para mim, mas ele acabou com isso no dia em que espancou Théo. Foi quando percebi que ele era um cretino com meu irmão. A arma em minha cabeça serviu apenas para terminar de confirmar o quão babaca ele era. Não sentirei falta dele enquanto eu viver.
...
– Mamãe olha o que o papai comprou! – exclamei entrando em casa com minha bicicleta nova. A queria a um bom tempo, mas meu pai dizia que me daria apenas se eu tirasse notas boas na escola. Acabou que fiz mais que isso. Tirei entre nove e dez em todas as matérias e estava me esforçando bastante nas aulas de natação o que chamou a atenção da treinadora que me chamou para participar de uma competição entre escolas de natação do estado. Ganhei medalha de ouro surpreendendo a todos inclusive a mim mesmo. Meu pai ficou muito orgulhoso de mim e depois da competição me levou ao shopping onde compramos aquela maravilhosa bicicleta azul de doze marchas que tanto desejei.
– É linda, Daniel – ela veio até mim e me deu um beijo na cabeça;
Atrás dela vinha meu irmãozinho que na época não tinha mais que sete anos de idade. Ele tinha aqueles cabelos loiros brilhantes e olhos azuis profundos e que demonstravam uma estranha tristeza que nunca entendi e na verdade nem me importava de verdade.
– Papai, posso ter uma bicicleta também? – Théo disse com sua vozinha doce e aguda que seria comum em uma menina de sua idade, mas que para um menino soava estranhamente afeminada.
– Quando aprender a falar igual a um menino – meu pai respondeu rispidamente.
Théo abaixou a cabeça e voltou para o corredor de onde veio provavelmente para ir para seu quarto brincar com seus bonecos ou desenhar. Mais uma vez não me importava, pois eu era apenas um garoto de onze anos feliz por ter dado orgulho ao meu pai. Ainda me lembrava a forma como ele foi até mim no pódio e me ergueu no colo sorrindo. Ele estava feliz e isso me deixava contente. Tudo o que eu queria era dar orgulho a ele e havia conseguido.
– Posso brincar lá fora com a bicicleta? – indaguei olhando meu presente.
– Só na praça aqui em frente! – minha mãe disse com carinho – Leve o Théo com você!
Imediatamente fiz um muxoxo, pois mesmo que gostasse de meu irmãozinho, odiava ter que tomar conta dele. Théo não dava trabalho, mas era uma criança estranha e que os outros garotos tiravam sarro. Era um bebezão que chorava por tudo.
– Deixa o garoto ir sozinho, Elena – meu pai interviu – Se ele tiver que ficar olhando o Théo não vai conseguir se divertir.
– Leve o Théo – minha mãe ordenou cruzando os braços.
Abaixei o descanso da minha bicicleta e fiz o que ela mandou. Não sei exatamente se foi uma lembrança daquele dia ou se minha mente criou tal coisa para amenizar a culpa da minha mãe na surra de meu irmão. Mas lembro dela dizer isso antes deu desaparecer no corredor do apartamento.
– Às vezes você é um babaca com Théo – ouvi a voz de minha mãe dizer.
Não houve resposta nenhuma além do som da porta da sala batendo. Quando voltei com meu irmão que ficou extremamente feliz em ir na praça comigo, meu pai já não estava mais na sala. Minha mãe estava sentada no sofá com om braços cruzados olhando fixamente para a televisão desligada.
...
– Você está bem, Dany? – Théo disse segurando meu braço e apoiando sua cabeça em meu ombro enquanto ambos olhávamos para o corpo de nosso pai no caixão.
– Ainda não sei – respondi com sinceridade – Sinto raiva, mas não sei se é apenas isso. Como você se sente?
– Sabe como me sinto – Théo disse com o olhar fixo no homem que destruiu sua infância e o fez sentir-se um lixo infeliz durante anos.
Ele tinha razão. Eu sabia exatamente como ele se sentia antes mesmo de perguntar. Não precisava de resposta, mas precisava ouvir.
– Quero ouvir em voz alta – disse friamente.
– Não precisa ouvir isso, Daniel – Bernardo falou com preocupação – Não agora.
– Preciso sim, Be – disse sem desviar os olhos do cadáver – Preciso que pelo menos alguém aqui seja sincero sobre que ele era.
Senti Théo soltar meu braço e se afastar de mim. Por um momento ele questionou se deveria atender meu pedido. Foi quando eu olhei para meu irmão mais novo trajando um terno preto com seu cabelo loiro arrepiado na parte superior e raspado na lateral. Seu olhar não demonstrava dor e nem luto. Era apenas um olhar vazio de quem não se importava. Não era esse olhar que eu esperava ver nele.
– Não sinto nada – ele disse me surpreendendo – Sei que achou que eu estaria feliz e por muito tempo eu também achei que ficaria feliz quando esse dia chegasse, mas sinceramente eu não sinto nada. Nem felicidade, nem raiva e nem tristeza. É como olhar para o corpo de um desconhecido.
– Não se sente triunfante? – indaguei.
– Triunfante em que? – Théo me olhou perplexo – Ele foi sim um canalha comigo, mas a vida já cuidou de puni-lo por isso. Nunca foi feliz, perdeu a família e morreu abandonado na cadeia. Não tenho pena dele, mas também não me sinto feliz com sua morte.
Pai canalha. Ele tinha razão nisso. Meu pai sempre nos tratou de forma claramente diferente e isso destruiu a confiança e autoestima de meu irmãozinho. Não conseguia nem imaginar como ele se sentiu durante todos esses anos de rejeição paterna.
...
– Por que não deixou o Théo vir? – indaguei ai meu pai enquanto comíamos no restaurante próximo ao quartel da aeronáutica. Meu pai me trouxe para conhecer o local onde ele trabalhava desde os dezoito anos e eu estava adorando ver todos aqueles aviões, armas e soldados. Todos me cumprimentavam e me paparicavam, pois meu pai era Brigadeiro e todos o bajulavam e o tratavam bem obedecendo suas ordens sempre com um estrondoso e firme:” Sim senhor!”.
Ele cruzou as mãos em cima da mesa em um gesto que fazia sempre que queria falar algo sério conosco. Seus olhos azuis se fixaram nos meus de uma forma que eu conhecia bem e temia um pouco. Era o olhar que usava quando nos dava alguma bronca.
– Seu irmão não merece – ele disse seriamente – É um garoto malvado e por isso está de castigo.
Naquela época meu irmãozinho vivia de castigo e eu não entendia o porquê. Havia perguntado o motivo diversas vezes a minha mãe e ela sempre franzia o cenho e dizia que meu pai sabia o que estava fazendo. Sua expressão sempre desaprovava o que meu pai faia, mas de sua boca saiam palavras de apoio. Era como se minha mãe não soubesse de que lado estava naquela história. Apoiava o filho injustiçado ou apoiaria o marido louco? Com essa resposta eu ia até Théo e lhe perguntava o porquê daquilo, mas meu irmão sempre dizia não saber do motivo. Ele sempre chorava, mas eu estava contaminado demais com o veneno de meu pai e achava que ele estava fazendo drama. Nunca verbalizei tal pensamento, mas ele era constante em minha mente. Papai dizia que Théo precisava ser castigado para aprender a se comportar e eu aceitava aquilo como se ele estivesse completamente certo. Afinal de contas os pais sabiam de tudo, não é?
Lembro de Fernanda indo ao quarto de Théo consola-lo por diversas vezes e achava que ela estava compactuando com o mal comportamento de meu irmãozinho. Sinceramente não sabia exatamente o que o mal comportamento era, mas tinha certas suspeitas de que se tratava do jeito afeminado de Théo. Sempre que ele deixava à mostra seus trejeitos meu pai gritava com ele mandando ele agir igual a um menino. De certa forma aquelas palavras também me atingiam, pois eu estava entrando na adolescência e começando a sentir atração pelas outras pessoas. Mais especificamente por outros meninos da minha escola, curso de inglês e na rua. Mas o pior era nas aulas de natação em que eu tinha que ver os outros garotos apenas com suas sungas. Não foi uma e nem duas vezes que eu me peguei olhando para o volume em suas sungas e me lembrava da voz esbravejante de meu pai gritando com Théo: “Deixa de ser bixinha! Aja como um garoto!”. Aquilo sempre me deixava mal.
Acho que foi nessa época que comecei a questionar se meu irmão era realmente mau ou não. Pena que foi tarde demais, pois quatro anos depois ele levaria uma surra horrível que o marcaria para o resto da vida.
– Por que ele é malvado? – não pude deixar de perguntar.
– Ele não é como você – meu pai disse encerrando o assunto.
Se já naquela época ele soubesse que eu e Théo éramos mais parecidos do que ele imaginava, tenho certeza que seria eu a levar aquela surra e não meu irmãozinho. Meu pai tiraria seu cinto e me golpearia diversas vezes em todo o corpo enquanto gritava o quanto odiava o que eu era e que não teria filho viado. E não teria ninguém ali para me defender. Naquela época não conhecia esse lado do meu pai, mas já sabia que deveria mudar para ser aceito por ele.
...
– Sinto muito pela sua perda – Léo disse ao chegar no velório – Como você está, cara?
Já estava cansado das pessoas me perguntarem como eu estava.
– Com raiva – disse me desvencilhando de Bernardo e Théo – Vai me dizer também que ele era uma boa pessoa e que morreu cedo demais? Ou vai fazer mais uma das suas piadas idiotas?
Não sei de onde aquilo veio e na verdade nem me importava naquele momento. Tudo o que eu queria era por aquela raiva para fora de alguma forma e infelizmente foi com Leonardo que não fez nada para merecer isso.
Ele então me abraçou apertado. Fui um babaca com ele, mas ele me abraçou da mesma forma como Marcelo e Bernardo me abraçaram quando me contaram sobre a morte do meu pai.
...
Saí do vestiário e lá estavam Bernardo, Théo e Marcelo na arquibancada. Todos olhavam para mim com uma expressão séria e eu sabia que algo não estava certo. Segui as ordens do treinador para o aquecimento e depois cumpri o treino como sempre, porém minha cabeça estava neles e no que havia de errado. Bernardo não sorria e nem acenava para mim como de costume e Théo parecia nem me olhar perdido em pensamentos. O único que estava normal era Marcelo e mesmo assim tinha algo em seu olhar que eu não conseguia identificar.
No fim do treino o treinador anunciou que eu representaria a escola na competição estadual e fiquei feliz com aquilo. Bernardo vivia me dizendo que eu conseguiria, mas tinha certas duvidas, pois haviam outros alunos que estavam no time desde o primeiro ano enquanto eu havia acabado de me juntar. Depois voltei para o vestiário e tomei um banho, mas a imagem dos três sentados me olhando treinar me perturbava. O que será que havia acontecido que os deixou daquele jeito? Será que era grave?
Vesti minha roupa e fui até eles que ainda me esperavam na arquibancada que agora estava completamente vazia a não ser por um garoto gótico que era amigo de Bernardo. Ao me ver ele se despediu e foi embora deixando os três sozinhos me fitando. Meu coração se acelerava a cada passo e a tensão esmagava minha alma.
– Falem logo o que foi – disse parando diante deles na arquibancada.
Bernardo se levantou e segurou minha mão.
– Acho melhor você sentar – murmurou com a voz ligeiramente rouca.
Olhei para os olhos verdes de Bernardo e imediatamente percebi que seja lá o que fosse era muito sério. Olhei para meu irmão e meu melhor amigo e todos me olhavam com uma mistura de pena, preocupação e compaixão. Sentei-me entre Bernardo e Théo.
– Vocês estão me assustando – disse com o coração pulsando tão rápido que tive a ligeira impressão de que iria explodir em meu peito a qualquer momento.
– Dany... – Bernardo hesitou um momento engolindo em seco – Seu pai faleceu esta manhã.
Aquilo me pegou como um soco forte no estomago. Forte o suficiente para me deixar sem ar e fazer tudo em volta girar e perder o foco. Meu pai estava morto. Morto! Ele estava morto!
– Como foi? – indaguei tentando fazer com que tudo entrasse em foco novamente, mas era quase impossível.
– Ele se enforcou com um lençol na sela – Marcelo disse com suavidade – Sinto muito, Daniel. Sei como vocês eram próximos.
Éramos próximos até o dia em que ele espancou meu irmão. Depois disso pude ver o monstro que ele era, mas ainda assim acreditei que ele pudesse mudar e voltar a ser aquele pai que me amava acima de tudo. Então ele apontou uma arma para minha cabeça e disse que tiraria minha vida.
– Não éramos próximos – disse cerrando os punhos – Não éramos mais.
Marcelo então se levantou e ajoelhou diante de mim. Meu amigo me abraçou apertado e de forma carinhosa afagando minhas costas.
– Ninguém vai te julgar mal se você chorar – ele disse com gentileza – Ele podia ser o que fosse, mais ainda assim era o seu pai.
– Eu sei – disse me afastando de meu amigo.
Bernardo então me abraçou e me deu um beijo na bochecha. Seu abraço significou muito para mim embora naquele momento não soubesse se deveria chorar ou comemorar.
...
– Sei que está com raiva – Léo disse – Eu também estaria. Mas quero que saiba que estarei com você até o fim.
– Obrigado – disse começando a chorar pela primeira vez desde que fiquei sabendo da morte de meu pai.
Foi quando Marcelo se aproximou de mim. Meu amigo tinha ficado comigo desde que fiquei sabendo da morte de meu pai e só se separou de mim agora que foi ao banheiro. Ele parou ao lado de Théo que segurou sua mão e olhou para mim com compreensão. Ele tinha razão quando disse que ninguém me julgaria mal por chorar a morte do meu pai. Ele pode ter sido um péssimo pai em diversos momentos, mas não tinha como negar que pelo menos comigo ele tentou ser bom. Haviam lembranças boas demais em nossa casa de praia em Búzios e nas vezes que ele ia torcer por mim nas competições de natação. Sempre que eu ganhava saíamos para comemorar apenas nós dois. Lembrava daquele verão que ele me deu minha primeira bicicleta e fiquei extremamente feliz que o abracei na loja e disse que o amava. Foi uma das poucas vezes que vi meu pai me dar um beijo. Foi um beijo na testa simples, mas que pude sentir que ele realmente me amava.
– Não sei como ele pode fazer isso – choraminguei nos braços de Léo.
– Não pensa nisso, amigo – Leonardo afagou minhas costas – Seu pai foi infeliz a vida inteira e agora está descansando.
Soltei Léo sentindo raiva por mais uma vez alguém tratar aquele homem como vítima.
– Sofreu por que quis! – disse aquilo alto demais – Ele não teve coragem de enfrentar o pai e ser quem ele era. Foi um covarde!
– Respeite o seu pai menino! – meu avô veio até mim. Seus olhos vermelhos de chorar pareciam pegar fogo.
– Respeitar ele? – disse dando uma gargalhada histérica que só serviu para deixa-lo com mais raiva ainda – Olha quem me manda respeita-lo! O homem que nunca deu-lhe um pingo de respeito quando era vivo! Você destruiu a confiança dele e o transformou no monstro que ele era!
– Eu o corrigi! – meu avô rebateu gritando mais alto do que eu – Coisa que ele deveria ter feito com vocês dois!
– Corrigiu? – Théo se meteu na discussão – Você sabia que seu filho “Corrigido” tinha uma página secreta no facebook e que ele usava para conhecer gays e transar com eles? Sabia que no computador dele tem milhares de fotos e vídeos de homens fazendo sexo inclusive fotos dele mesmo?
– Ele nunca faria isso! – meu avô parecia ultrajado – Ele saiu dessa vida de perversão e pecado.
Tanto eu quanto Théo caímos na gargalhada como se ambos fossemos loucos.
– Vamos sair daqui, Daniel – Bernardo pegou em meu braço – Estão todos olhando.
Olhei em volta e ele tinha razão. Todos os nossos parentes, amigos e colegas de serviço de meu pai olhavam para nós esperando apenas pelo próximo ato no showzinho que estávamos fazendo no funeral de Jorge Vilella. Mas não era o olhar daquelas pessoas que me incomodava e sim o de minha mãe que parecia perplexa com tudo aquilo. Ela estava sentada em uma cadeira nos fundos da capela desde que chegou. Não falava com ninguém e também não chorava. Apenas ficava ali olhando a movimentação.
– Quer saber de uma coisa? – disse bem alto para que todos pudessem me ouvir – Todos vocês são uns idiotas de chegarem aqui e me dizerem que sentem muito pela morte dele e que era um ótimo pai e um excelente oficial, mas o que vocês nãos sabem é que Jorge Vilella era um lixo de pessoa! Era um viado que tinha medo de enfrentar o mundo. Um pai medíocre que maltratava o filho e o espancou severamente só por que ele o lembrava de si quando criança. Esse homem pelo qual estão chorando apontou uma arma para minha cabeça e disse que me mataria e depois faria o mesmo com Théo! Quer saber? Espero que ele esteja sentando no pau do capeta agora mesmo!
Meu avô perdeu a paciência e me deu um soco no rosto tão forte que me fez cair no chão. Senti gosto se sangue e passei a mão em minha boca apenas para constatar que havia um fio de sangue escorrendo dela. Sorri para meu avô que chorava de raiva e tristeza.
– Como ousa falar dele assim?! – gritou – Ele era seu pai!
Minha avó chegou por trás dele e segurou seu braço.
– Deixa ele, Álvaro – ela disse chorosa – Venha.
– Deixa ele fazer o que faz de melhor Vó – disse sorrindo – Deixa ele me espancar do mesmo jeito que fez com ele! – falei apontando para o caixão – Ai depois que ele me quebrar todo a senhora acoberta isso escondendo de toda a família o que o monstro fez.
– Você não está falando coisa com coisa, Daniel – ela disse ultrajada – Acho que deveria dormir um pouco.
– Eu nunca falo coisa com coisa não é Vó? – falei me levantando do chão – Acha que me esqueci como me chamou de mentiroso na frente de todos no seu aniversário? Acha que esqueci daquele discurso em que a senhora disse que meu pai era um garoto doce e carinhoso?
– Sei que não esqueceu – ela disse friamente – E volto a dizer que não acredito que ele tenha feito essas coisas. Eu o conhecia melhor que qualquer um.
– Talvez a senhora devesse reavaliar se realmente conhece as pessoas – dei um sorriso sádico – Ou talvez a senhora conheça, mas acha que os monstros dentro delas ficaram presos dentro do armário a vida inteira. Mas deixa eu te dizer uma coisa Dona Marcia. Os monstros dentro dos armários saem a noite e devoram as criancinhas que dormem em suas camas. Esse Jorge que você conheceu foi morto pelo monstro que a senhora chama de marido. Depois disso só sobrou o monstro.
– Você está louco, Daniel – ela disse me olhando com raiva – Acho que deveria se retirar já que odiava seu pai tanto assim.
– Vamos Dany – Bernardo disse me puxando para fora.
Dei mais uma olhada em volta e todos me olhavam perplexo, mas não me importava com nenhum deles. Nem com o olhar de Fernanda que até aquele momento tinha ficado abraçada com Guilherme fitando o vazio sem acreditar que nosso pai estava morto. Agora ela me olhava com uma mistura de preocupação e surpresa, mas estava tão abalada com toda a situação que ainda não conseguia se levantar. Fernanda sabia quem meu pai era assim como eu, mas mesmo assim ela nunca deixou de ama-lo. “Me desculpa”. Formei tais palavras com os lábios e sei que ela me entendeu, pois assentiu uma vez.
– Vou te levar para casa – Bernardo disse pegando o celular e abrindo o aplicativo do Uber – Você precisa descansar. Não dormiu a noite inteira.
– Eu falei demais não é? – indaguei ao meu namorado.
– Falou, mas entendo que você – Bernardo disse finalizando o pedido do carro – Tem muita coisa se passando na sua mente.
– Falei muita merda – disse passando a mão por meu cabelo loiro que aquela altura já devia estar todo desgrenhado – Tento dizer a mim mesmo que não sentirei falta dele, mas fico lembrando de quando eu era criança e o achava o melhor pai do mundo. Está tudo confuso na minha mente! – ao dizer isso recomecei a chorar desesperado. Sentei-me no meio fio e voltei a levar as mãos à cabeça – Como ele pôde fazer isso, Bernardo?
Bernardo sentou-se ao meu lado no meio-fio e envolveu seu braço direito em torno do meu ombro. Aninhei-me em meu namorado me sentindo ligeiramente confortável, porém em meu peito havia um buraco sangrando que insistia em doer de forma latejante me tirando o folego.
– Eu não sei por que ele fez isso, mas saiba que está tudo bem chorar e sentir falta dele – Bernardo afagou meu braço – Ele tinha muitos defeitos, mas era seu pai e vocês passaram momentos bons e inesquecíveis juntos. Sei que com os últimos acontecimentos seu cabeça está confusa.
– Muito confusa – admiti – Não sei o que é certo sentir.
– Acho que a dor da perda é o mais apropriado – Bernardo sugeriu – Não tenha medo de sentir isso, pois como Marcelo disso: “Ninguém vai te julgar”.
– Mas e Théo? – indaguei – Ao chorar por meu pai estou traindo meu irmão.
Bernardo me deu um beijo na testa exatamente como o que meu pai me deu na loja de bicicletas no shopping e isso só fez o buraco em meu peito doer ainda mais.
– Você não está traindo ninguém, Dany – ele falou de forma doce – Você e seu irmão tem sentimentos diferentes e tenho certeza de que Théo consegue entender isso. Ele não vai te criticar por nada. Apenas se permita sentir.
Foi quando o nosso carro chegou e Bernardo me colocou dentro. Seguimos para seu apartamento no Flamengo. Chegando lá demos de cara com Ian que havia acabado de chegar da escola para poder ir ao velório. Ele me abraçou, porém não disse que sentia muito como todos fizeram. Apenas ficou em silencio. Depois disse que iria ver como Théo estava e assentimos.
Bernardo me levou para o andar de cima e disse para eu tomar um banho. Fiz o que ele mandou sentindo a água quente me anestesiar e causar certe sonolência o que era normal visto que não consegui dormir nenhum pouco naquela noite. Fui até o quarto de meu namorado e vesti uma muda de roupa minha que estava em seu guarda-roupa e me deitei em sua cama.
– Quer comer alguma coisa? – ele indagou-me – Eu posso pedir para Mirian fazer um lanche para você.
– Não precisa, amor – disse me cobrindo com seu edredom, pois o quarto estava gelado devido ao ar-condicionado – Só preciso dormir um pouco.
– Tudo bem – ele disse preocupado – Só vou tomar um banho rapidinho.
Assenti e Bernardo apagou a luz do quarto e saiu me deixando sozinho. Sinceramente não sei quando dormi, mas sei que foi logo já que não vi meu namorado voltar do banho.
Era cinco da tarde quando caí no sono e não me lembro de ter sonhado nada. Acordei por volta das cinco da manhã e fiquei fitando o teto pensando. Bernardo dormia aninhado em meu peito tão tranquilo quanto um anjo. Meu anjo que me tirou daquele lugar antes que eu fizesse mais bobagens. Passei a mão por meu lábio ferido e percebi que ele estava ligeiramente inchado devido ao soco do meu Avô. Soco que foi dado pela raiva dele em ouvir a verdade e não por eu estar desrespeitando meu pai morto. Ele fez o que já queria fazer desde que descobriu que eu era gay no aniversário da minha avó. “Outro? O que tem na água da casa de vocês?”. Naquele dia pude sentir o asco impregnado em cada palavra e na forma como ele torceu o nariz para mim. Sei que aquele soco não chegou nem perto de saciar sua vontade de me dar uma surra. E o discurso ridículo da minha avó? Aquilo foi claramente para mim que estava acusando meu pai de tentativa de homicídio e agressão. Ela me odiava por colocar seu filhinho atrás das grades e sei que agora ela me culpava por sua morte.
– Mas eu não tenho culpa, porra! – era para ter sido um pensamento, porém acabei verbalizando tais palavras alto o suficiente para acordar Bernardo.
– O que foi, amor? – ele disse preocupado.
– Desculpe te acordar, Be – disse me virando para ele e dando-lhe um beijo suave – Pensei em voz alta.
– Entendi – ele levou a mão até uma mecha de cabelo loiro que estava em meu olho e o tirou – E de que você não tem culpa?
Olhei nos olhos verdes de meu namorado e respirei fundo.
– Eu estava pensando que minha avó me culpa pela morte dele – disse em um sussurro tão baixo que o som de uma agulha caindo no chão abafaria minhas palavras – E acabei dizendo que não tenho culpa.
– E realmente não tem – ele disse seriamente – Nada do que aconteceu com seu pai foi culpa sua. Tudo foi consequência das escolhas que ele fez. Não se culpe por nada.
– Não me culpo – disse com sinceridade – Mas queria que isso acabasse logo.
– Acaba hoje de manhã – ele me garantiu.
Mas Bernardo estava errado. O enterro foi as dez horas e houve uma oração e depois uma pequena homenagem militar em que cantaram o hino nacional e cobriram o caixão de meu pai com a bandeira do Brasil. Todos olhavam para mim enquanto o caixão era arriado no tumulo de mármore. Eram olhares acusadores, debochados e alguns até surpresos de me ver. Mas o que me surpreendeu realmente foi ter visto Théo chorar. Não foi um choro desesperado como o de minha avó ou o de Fernanda. Estava mais para algumas lágrimas escorrendo por seu rosto, mas ainda assim ele chorava a morte de nosso pai.
Quando o tumulo foi fechado todos começaram a se abraçar e se despedir. Ninguém além de meus amigos, meus irmãos, mãe e cunhado me abraçaram. Depois todos começaram a ir embora deixando-nos ali contemplando o tumulo de meu pai. Bernardo me prometeu que aquilo acabaria hoje, mas nunca acabaria. Sempre existiria um buraco em meu peito.
Fui embora carregando meu coração sangrando no peito. Ódio, tristeza e mágoa que sentia por ele se foi deixando apenas saudade. Meu pai foi um homem horrível e um pai pior ainda, mas sabia que em algum momento de minha vida ele me amou.
– Adeus pai – disse ao entrar no carro de minha mãe.
...
Agradeço a todos pelos comentários no capitulo anterior, mas agradeço principalmente ao Teuss. Fico feliz que meu conto foi capaz de te afastar de tais pensamentos e deixa eu te contar uma coisa que nunca disse a ninguém. Escrevo para afastar esse tipo de pensamento, pois quando escrevo sinto que sou outra pessoa melhor que eu. Isso me ajuda muito a não me entregar e espero que você também não se entregue, pois por mais difícil que a vida possa ser desistir não é a solução. Erga-se e lute por sua vida, pois por mais que não te conheça e não saiba nada a respeito de você sei que merece ser feliz, pois todos merecemos isso. Tome como exemplo a vida de Ian que desandou completamente, mas que agora ele consegue ver uma luz. Ou mesmo a de Théo que passou por coisas horríveis com sua família, mas que hoje consegue ser feliz. Espero que Isso tenha te ajudado.
Obrigado a todos que leram este capitulo e até o próximo!