NO DESVÃO É QUE MORA O PERIGO 1
Luiz olhou no corredor e viu um monte de coisas empilhadas: fogão, geladeira, malas, caixas, muitas caixas. Era mais uma mudança no edifício. A porta do apartamento aberta, o vozerio no interior, as batidas de martelo o fizeram, antes de enfiar a chave em sua porta, verificar o que se passava. De dentro um loiro alto orientava dois ajudantes. Luiz se apresentou, disse ser o vizinho, e se colocou à disposição para qualquer ajuda necessária.
Também ele se mudara recentemente para aquele edifício antigo, de apartamentos pequenos, cujas unidades davam para um longo corredor aberto, oito por andar. Espremido entre as centenas de outros assemelhados, formava a zona pobre do centro de São Paulo, de fácil acesso para todo lugar, perto do metrô, condomínio baixo e outras facilidades que atraiam moradores pouco exigentes.
As marteladas continuavam ao lado, e Luiz resolveu voltar à porta aberta: quer jantar? Acabei de fazer. O loiro abriu um sorriso agradecido: porra... nem almocei hoje. Tô morrendo de fome. Luiz deixou o bife mal passado a pedido de Téo e, no breve diálogo entre garfos e facas, ambos comentaram sobre as atribulações de uma mudança. Posso tomar banho aqui?, indagou Téo, o inquilino anterior levou o chuveiro... vou ter de comprar um.
Vestindo bermuda e uma camiseta amarrotada, Teó saiu do banheiro ainda enxugando os cabelos, quase longos, de um loiro escuro agora quase castanho. Luiz examinou-o de alto a baixo. Pernas um pouco tortas e peludas, coxas vigorosas, um corpo não sarado mas muito bem proporcionado, ombros largos e quadril estreito, quase dois metros de altura, qualquer coisa entre 30 e 34 anos. Muito obrigado, disse Téo, tirando Luiz de seu breve devaneio. Vou ver se consigo dormir um pouco, tô cansado pra caralho... pelo menos a cama deu pra armar... ó, o rango tava dez, se der me convida de novo, completou sorrindo o loiro ao sair pela porta.
Ao contrário de d. Silmara, a moradora anterior, Luiz concluiu que teria um vizinho mais receptivo e simpático. Deu comida para Zilda, uma gatinha sarará muito da abelhuda que ele criava e pegou uma revista para ler. Luiz era contador e trabalhava num escritório no Brás, 28 anos de uma vida dedicada à sobrevivência e ao trabalho, magro e de olhos castanhos, corpo mediano e uma cabeça cheia de imaginação. Reservado, tivera poucos contatos íntimos com homens, pois não gostava de frequentar ambientes gays da cidade.
Ao chegar em casa, no dia seguinte, encontrou Téo terminando de chavear sua porta, ao lado de uma morena baixinha e bunduda, ambos com cabelos molhados e simpáticos sorrisos: essa é a Carla... foi ele que me deu comida ontem... já botei o chuveiro... tchau. Ambos sumiram no elevador e Luiz logo ouviu o miado de Zilda. Quer dizer que ele é casado..., concluiu entre um ovo e uma fatia de presunto, ... que pena.... deve ter um belo cacete, dando uma rápida virada na frigideira para fritar o outro lado da omelete, ... saco, ele é tão bonitão. Fazer o quê... todo homem que eu curto é casado e hétero... mastigou a fatia de pão, já tô de saco cheio de ficar esperando, engoliu em seco.
Alguns dias se passaram. Ao chegar em casa, Luiz ouviu ruídos no vizinho, martelo e furadeira. Que bom que você chegou... dá pra dar uma mãozinha aqui?, disse Téo na soleira da porta. Junto com o zelador, tentavam instalar um armário de cozinha e eram necessários dois para segurar e outro para aparafusar. Instalada a peça, o zelador rapidamente saiu, dizendo que tinha outras coisas pra fazer. A cozinha estava um caos: caixas empilhadas, sacolas abarrotadas, sujeira e restos de embalagem de papelão. Vou te ajudar, disse Luiz, começando a desembrulhar pacotes. Ambos se puseram na arrumação até um momento em que Téo, para passar para a área de serviço, teve de encostar-se em Luiz, colocando suas duas mãos na cintura do rapaz lavando louça. Parou bruscamente, o nariz em seu cangote:... humm... que cheiro bom, que marca é? Luiz estremeceu por um átimo, respondeu meio abafado, procurando controlar as sensações nele desencadeadas pela proximidade tão estreita do outro.
Téo demorou-se um pouco lavando panos no tanque e na volta, novamente debruçou-se sobre Luiz. Para com isso, Téo.... vou quebrar o prato.... Ah, é, o loiro exclamou e, maldosamente, subiu suas mãos da cintura para o peito do rapaz, apertou levemente seus mamilos e disse baixinho em seu ouvido grifando todas as letras: Puto!
Luiz nem teve tempo de responder e o outro já estava longe. Mas seu corpo não deixou de registrar a onda erótica entre um vai e outro vem. Quer dizer que ele notara... e pelo jeito não era nada ingênuo, pelo modo como falou. Mas e a Carla, onde estava ela?
Eu sou policial... civil... sou meio cavalão, entende, é difícil mulher que me aguente, não tenho muito horário, nem sempre durmo em casa... é uma vida complicada pra casar, ia falando Téo entre uma peça e outra guardada no armário. Aos poucos ambos comentaram por alto sobre suas vidas e concluíram que eram diametralmente opostas: um, de uma regularidade monótona e sem cor, o outro, uma sucessão de aventuras dignas de um blockbuster. Já passei por cada uma..., prosseguiu o loiro, atrás de bandido, nessas favelas, já levei um tiro no ombro, olha a marca, levantando a manga da camiseta. A Zilda gostou de você, não é com todo mundo que ela fica assim quietinha, comentou Luiz, ao ver sua gata repousando no colo do novo amigo, que a afagava ternamente entre os dedos. Vindo das coxilhas gaúchas, o policial tinha, em sua antiga memória, o cheiro de animais nas narinas, o prazer advindo das pelagens macias, agora substituídos pelos de pólvora e lixo das periferias. E Luiz, vendo a cena, por um instante se imaginou ser a gata, desfrutando das carícias daqueles dedos ágeis e longos. Essa gatinha é uma delícia, mas tenho de dormir porque amanhã acordo cedo, Téo passou Zilda para Luiz, pondo fim à conversa.
Os dias seguintes não registraram nenhuma novidade entre eles, a não ser uma reunião de condomínio a que ambos compareceram para discutir a substituição de várias janelas da fachada avariadas pelo tempo. Ao final, ambos foram tomar uma cerveja num bar ali debaixo e comentar o aumento do condomínio. Dando um último gole no copo, Téo se despediu: vou ver se pego uma gata... tô precisando descarregar. Virou no calcanhar e ganhou a rua.
Luiz foi absorvendo, entre pequenos tragos, o líquido amarelo e amargo. Talvez mais amargo diante do ocorrido, pois Téo não voltara ao assunto, não fizera nenhuma nova insinuação, não tocara, mesmo que de leve, seu corpo. Não tenho sorte, concluiu o contador, enquanto examinava, um por um, os clientes ao redor. Um era antipático, o outro sem o menor interesse, dois ou três nem notavam sua presença, aqueles dois só estão interessados em futebol. É, o jeito é eu dormir com a Zilda, fechou a conta e subiu.
Três dias depois, Luiz deixou a porta de entrada aberta para aumentar a circulação de ar, num dia abafado e quente. Estava terminando o Jornal Nacional quando Téo parou no vão de entrada: Como vai?.... tô num bagaço.... passei a tarde inteira trepado num pedaço de muro, num desvão de terreno sem apoio. O policial explicou que aquele tinha sido o melhor lugar que encontrara para fazer vigilância, mas que estava com as coxas e as costas doloridas, pelo incômodo da posição. Bom, posso te fazer uma massagem, disse Luiz, tentando ajudar. Você sabe?, vou tomar um banho e volto, disse o gaúcho.
Meia hora depois retornou, apenas de bermuda. Luiz preparara um óleo morno apropriado e encontrara, na caixinha do banheiro, um gel à base de cânfora. Fechou a porta e ambos foram para o quarto, junto com Zilda. Luiz pediu a Téo para tirar a bermuda e deitar-se de bruços na cama, ao que o outro replicou que estava sem cueca e não ia ficar pelado. O jeito foi cobri-lo com uma toalha.
Pela primeira vez Luiz se deparava com o corpo de Téo tão próximo e entregue às suas mãos. Os pés grandes, as pernas robustas, as costas vigorosas. Aquilo mexeu com seus sentidos e suas mãos suaram frias, sua respiração se alterou, seu corpo quase tremeu. Para não dar um vexame e tentar acabar com sua impaciência, resolveu começar pelos pés. Apoiou-os entre suas coxas e, compassadamente, fincou os dedões nos músculos planos. O policial deu um gemido, ele acertara algum nervo lesado. Fica frio, é aqui no pé que tudo começa, disse-lhe Luiz, enquanto Zilda pulava para a cama e se aninhava no travesseiro entre o ombro e a cabeça do homem da lei.
(continua)
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