Parte 19: “Eu Só Queria Me Reconhecer”.*
Mari se recostou no encosto do confortável sofá, os olhos perdidos em algum ponto distante, como se estivesse olhando para além da sala de terapia. Celo segurava sua mão com firmeza, enquanto a terapeuta observava em silêncio. Mas Mari não estava mais ali. Sua mente a puxava para um tempo distante, para um lugar onde tudo começou.
Ela se viu mais jovem, ingênua, completamente devota a Alberto. Ele não era apenas seu noivo; era sua bússola, seu norte, a pessoa que a fazia sentir que o amor verdadeiro existia. Ele falava sobre liberdade, sobre viver sem amarras, e Mari acreditava em cada palavra. Tudo o que ele dizia fazia sentido para ela. Se Alberto queria algo, era porque sabia o que era melhor para os dois.
No começo, tudo parecia natural. Ele a levava a festas, a encontros privados, a lugares que ela nunca imaginaria conhecer sozinha. Alberto sempre conduzia tudo, e Mari seguia. Ele a ensinava, a moldava, e ela se entregava sem reservas. Se ele dizia que era certo, então era. Se ele dizia que era especial, então era. Mari não questionava. Apenas confiava.
A primeira festa ainda estava vívida em sua memória. Uma casa grande, luzes baixas, música pulsante, pessoas rindo, conversando, se tocando sem reservas. O ar parecia eletrificado por uma promessa implícita. Alberto a apresentou a um casal de amigos, e Mari se sentiu privilegiada por ser escolhida para estar ali. O nervosismo inicial logo se dissipou quando Alberto a segurou pela cintura e sussurrou em seu ouvido:
— Apenas confie em mim, amor. Eu sei o que é melhor para nós.
Seu coração batia acelerado. No início, sentia excitação e pertencimento. Tocou, foi tocada. Deixou-se levar pelo momento, não só por desejo próprio, mas porque Alberto queria. E se ele queria, então era certo. Ela queria ser a mulher perfeita para ele, a companheira ideal que compartilhava seus desejos e vontades.
Mas a euforia não durou para sempre.
Uma noite ficou marcada. O clube privado, luxuoso, com um brilho frio que refletia o tipo de poder que se escondia ali dentro. Mari sentiu um aperto no peito quando Alberto a apresentou a um homem mais velho, um conhecido dele. O sorriso de Alberto era encorajador, mas seus olhos carregavam uma expectativa velada.
— Divirta-se. — Ele disse, a voz leve, como se fosse algo trivial. — Você sempre foi incrível nisso.
Mari hesitou. Algo dentro dela gritou que não queria. Mas Alberto a olhava com impaciência, como se esperasse que ela fizesse o que sempre fazia: obedecer. Ele nunca levantava a voz, nunca a forçava. Não precisava. Ele apenas sorria, falava com doçura, e Mari sempre cedia. Afinal, ela o amava. Ela confiava nele.
No quarto, com aquele homem, sentiu um vazio esmagador. Fez o que ele queria, não por vontade própria, mas porque sabia que Alberto esperava aquilo dela. Quando voltou para o salão, Alberto estava rindo com os amigos, bebendo como se nada tivesse acontecido. Como se ela tivesse cumprido apenas mais um papel necessário para mantê-lo satisfeito.
Com o tempo, Mari percebeu que não era apenas sobre ela. Alberto a levava a essas festas, a apresentava a novos parceiros, mas sempre era ele quem decidia. Sempre ele no controle. E ela seguia, sem perceber que estava perdendo a si mesma.
O clique veio tarde demais. Não era liberdade. Nunca fora. Alberto a manipulava, a moldava conforme sua vontade, e ela, cega, acreditava estar no controle. Mas era apenas um troféu. Um acessório para alimentar o ego dele. Uma peça de barganha para os amigos.
Mari suspirou, voltando ao presente. O silêncio na sala de terapia era quase palpável. Sentiu um aperto no peito, mas também um alívio. Pelo menos, conseguia olhar para trás e ver a verdade sem desviar o olhar.
Celo apertou sua mão, um gesto simples, mas cheio de significado. Ela respirou fundo. Estava na hora de ressignificar sua história.
A terapeuta interveio, a voz calma e profissional.
— Você se sentia usada?
Mari hesitou, mas então acenou com a cabeça.
— No começo, não. Ele me exibia para os amigos, como se eu fosse uma prova de que ele era moderno, liberal. Eu era a namorada "perfeita", que fazia tudo para que ele se sentisse amado e para deixá-lo feliz. Mas, no fundo, eu não estava fazendo aquilo por mim, e sim, pelo amor que eu sentia por ele. Estava fazendo para ele, porque acreditava que era assim que deveria ser. Que era minha obrigação, por amá-lo.
Celo apenas ouvia, sem interromper, disposto a entender melhor o passado da esposa, procurando qualquer sinal positivo que o ajudasse a não desistir de Mari. Talvez, a resposta estivesse mais próxima do que ele imaginava.
Incentivada pela amiga e terapeuta, Mari voltou a contar, mergulhando profundamente nas próprias lembranças e dores.
A primeira vez que Mari percebeu que algo estava errado não foi em uma festa luxuosa, rodeada por desconhecidos que sussurravam segredos entre taças de champanhe. Não foi em uma noite de excessos, onde tudo parecia girar em torno do prazer e da libertação. Foi em casa, sentada à mesa de jantar com sua família, ouvindo seu pai, um homem intenso e machista, elogiar Alberto, sorrindo para ele como se fosse o homem ideal.
— Você tem sorte, Mari. Alberto é um homem de verdade. Cuida de você, te dá tudo do bom e do melhor. Um casamento com ele é o futuro que qualquer mulher sonharia em ter.
Ela sorriu, como sempre fazia. Como sempre fora ensinada a fazer.
Desde criança, sabia que aquele era o destino esperado. Sua família via Alberto como um parceiro ideal. E, por muito tempo, ela acreditou. Porque queria acreditar. Seu pai sempre a lembrava de que Alberto a amava, que fazia tudo por ela. E Mari se agarrou àquilo. Afinal, era isso que esperavam dela. Era isso que ela devia desejar.
E ela desejou. Amou Alberto com tudo o que tinha. Se moldou ao que ele queria, fez de tudo para ser a mulher que ele precisava. E quando ele pedia algo, Mari cedia, não porque era coagida, mas porque acreditava que aquele era o significado do amor: abrir mão de si mesma para fazer o outro feliz.
Mas, com o tempo, percebeu que não era sobre amor. Era sobre controle. Alberto não precisava mais dela.
O dia em que Alberto a desprezou foi o dia em que Mari finalmente enxergou a verdade. Ele a descartou como quem troca de roupa, como se todo aquele tempo juntos não tivesse significado nada. Foi ali que ela entendeu: nunca foi sobre agradar, nunca foi sobre amor. Sempre foi sobre ser usada, servir a alguém e esquecer de si própria.
E mesmo depois, quando Celo entrou em sua vida, o trauma permaneceu. Fundo. Enraizado. Intocado. Ele não merecia carregar aquele peso, mas, sem perceber, acabou pagando por erros que não eram dele.
Agora, ali, sentada naquele consultório, revivendo cada ferida, Mari percebeu o quanto havia se doado sem receber nada em troca. Quanto tempo havia passado se punindo por um crime que não era seu. Seus olhos estavam marejados, mas sua voz era firme. Porque, daquela vez, ela não precisava mais se calar.
O silêncio que se seguiu foi quase sufocante. Mari piscou algumas vezes, enquanto voltava à realidade. A terapeuta esperou um instante antes de falar, dando-lhe espaço para absorver tudo. Então, com a voz suave, perguntou:
— Como foi carregar esse peso sozinha por tanto tempo?
Mari apertou os lábios, pensativa.
— Cansativo. — Ela admitiu. — Mas, na época, era o que eu acreditava que fosse o significado da palavra “amor”, eu não via outra opção.
Celo franziu a testa, a postura tensa.
— Mas e você? O que você queria?
Mari desviou o olhar para ele, hesitante. Pela primeira vez, a resposta não parecia tão óbvia.
Celo apertou os punhos e balançou a cabeça.
— Você não precisa ter medo comigo, Mari. Eu quero você ... do jeito que você realmente é.
Ela sorriu, mas havia um peso em seu olhar. A terapeuta observou a troca entre os dois antes de perguntar:
— Quando foi a última vez que sentiu que estava realmente no controle da sua vida?
Mari hesitou. Seu olhar se perdeu no vazio, buscando a resposta em algum canto da memória. Quando falou, sua voz era quase um sussurro.
— Acho que … — Ela encarou Celo, apreensiva. — Naquela vez, na casa de praia. Antes de você desaparecer.
Celo sentiu um aperto no peito.
— Então … foi assim que você se sentiu. — Ele disse, pensativo.
A terapeuta sorriu, como se estivesse esperando exatamente aquela conclusão.
— E como podemos fazer isso, Mari? Como podemos encontrar sua voz no meio de tudo isso?
Mari respirou fundo, se preparando para mergulhar em algo ainda mais profundo. Ela estava receosa, mas precisava colocar tudo para fora de uma vez. Antes que perdesse a coragem.
Celo apertou os lábios, escolhendo as palavras com cuidado.
— Depois de tudo o que você contou ... o que mudou para ter acontecido o que aconteceu naquela casa de praia?
Mari abriu a boca para responder, mas nada saiu. Estava tensa, respirando pesado, buscando ar em um lugar onde ele parecia não existir
Antes que ela pudesse falar, Celo continuou, sua voz mais baixa, mais próxima:
— Não quero te pressionar, Mari. Só quero entender. — Ele a observava com um olhar firme, mas cheio de cuidado. — A pessoa que está aqui agora, se abrindo, se permitindo sentir, é muito diferente da pessoa daquele dia.
Ela desviou os olhos. Sabia que precisava falar, mas como explicar algo que ela mesma não compreendia completamente?
Então, sem aviso, as lembranças a puxaram para trás.
O mar se estendia até onde os olhos podiam alcançar, uma imensidão azul pontilhada pelo brilho dourado do sol. A brisa salgada acariciava sua pele, e as risadas ecoavam ao fundo. Celo tocava violão, um sorriso genuíno no rosto. Mas tudo o que Mari sentia era um frio interno, um tremor sutil que não vinha do vento.
Celo estava perto, mas não com ela. Estava sempre com Anna. Ao lado dela, Paul, sempre gentil e solícito, contava com a simpatia de Celo para sua aproximação.
Desde que chegaram, Celo orbitava ao redor de Anna. Os dois trocavam olhares cúmplices, sorrisos fáceis. Não era algo que incomodava de forma convencional, pois não havia traição ali, nenhuma quebra de confiança. Mas havia uma distância, um espaço que Mari não sabia como preencher.
Celo queria que ela fosse livre, queria que ela escolhesse. Ele sempre deu a entender essa intenção. E, após tudo o que o passado a impedira de fazer, Mari sentiu que podia.
Naquela noite, entre goles de vinho e conversas, ela percebeu algo nos olhos de Celo: ele não a prendia. Ele não a guiava. Apenas estava ali, presente, esperando para ver qual caminho ela decidiria tomar.
E, sem a sombra de um olhar julgador, sem a pressão de expectativas alheias, Mari se permitiu explorar um desejo que talvez sempre estivera ali, mas que nunca tivera espaço para tomar como seu.
Ela piscou de volta para o presente, o peito apertado.
— Você não me prendeu. — Sua voz saiu rouca, quase um sussurro. — Você me deixou escolher. Pela primeira vez, eu senti que não devia nada a ninguém.
Celo inclinou a cabeça, absorvendo suas palavras.
— E foi isso que te fez seguir em frente?
Mari fechou os olhos por um instante antes de encará-lo novamente.
— Foi isso que me fez sentir que eu era dona da minha própria vida.
A terapeuta observava em silêncio, permitindo que a conversa fluísse entre os dois.
Celo respirou fundo.
— Mas se foi assim ... então por que agora você parece tão distante disso?
Mari passou a língua pelos lábios, hesitante.
— Porque ... — Ela segurou o braço da cadeira com força. — ... Porque eu não sei mais se foi a escolha certa.
A sala ficou em silêncio.
Celo não desviou os olhos dela, mantendo o silêncio por mais alguns segundos. Sua testa franzida denunciava o peso dos pensamentos que se formavam em sua mente. Ele queria dizer algo, queria negar ou justificar, mas, no fundo, sabia que Mari estava certa.
Apesar do aperto no peito, ele se sentia orgulhoso. Mari assumia a responsabilidade e estava disposta a encarar as consequências.
Celo sempre acreditou que estava apenas sendo um parceiro compreensivo, que queria que Mari fosse livre para explorar o que desejasse. Mas e se, no fundo, ele tivesse guiado tudo para aquele caminho? E se, sem perceber, tivesse empurrado Mari para algo que ela interpretou como uma necessidade dele?
— Mari … — Ele respirou fundo antes de continuar. — ... Você achou que era isso que eu queria?
Ela o encarou, sem fugir da pergunta.
— Do jeito que você falava … do jeito que você reagia … sim.
A terapeuta manteve seu olhar atento nos dois, mas não interferiu. Aquilo precisava ser dito entre eles.
Mari umedeceu os lábios, tentando organizar os pensamentos.
— Quando eu voltei da despedida de solteira da Fabi, eu te contei tudo. Cada detalhe. E você me ouviu … e não só aceitou, como parecia … — Ela hesitou por um instante.
— Parecia o quê? — Celo perguntou, baixinho.
— Parecia feliz. Curioso. Como se fosse algo que te intrigasse de verdade. Você não ficou incomodado, nem enciumado. Pelo contrário. Quanto mais a gente falava sobre aquilo, mais eu sentia que aquele mundo te interessava.
Celo fechou os olhos por um instante. Ele se lembrava perfeitamente daquela conversa. Ele tinha ficado surpreso, claro. Mas também … excitado. Fascinado.
Mari continuou:
— E então … quando fomos para a casa de praia … desde o momento em que chegamos, eu senti que você estava … incentivando.
Ela o observou atentamente, procurando sinais de negação, mas Celo apenas ouvia, absorvendo tudo.
— A Anna se interessou por você desde o começo. O Paul … por mim. Mas não foi algo que simplesmente aconteceu. Você encorajou. Você deixou espaço para que eu me sentisse segura para ir além. Não de um jeito errado, não me forçando a nada, mas sempre mostrando que aquilo era uma opção.
Celo passou as mãos pelo rosto.
— Eu nunca quis que você se sentisse pressionada.
Mari assentiu.
— Eu sei. Mas acho que, de certa forma, eu enxerguei o seu desejo antes mesmo de você perceber que ele existia. Ou, ao menos, achei que enxergava …
A terapeuta inclinou levemente a cabeça.
— E o que você sente agora, Mari? Sabendo disso?
Ela suspirou, olhando para Celo.
— Sinto que preciso entender se aquilo era mesmo o que eu queria … se era o que Celo queria … ou se eu interpretei tudo errado.
Aquelas palavras atingiram Celo como um soco no estômago. Ele não queria ser mais um a moldar Mari. Mais um a guiá-la sem que ela se desse conta. Ele queria que ela fosse livre.
Mas será que, sem perceber, tinha feito exatamente o oposto?
De qualquer forma, havia muito para digerir. Celo não estava bravo, ou decepcionado, ele apenas não sabia o que sentir.
{…}
Paul estava em seu escritório, em casa, sentado diante do computador, mas sua mente vagava longe. Os projetos abertos na tela eram apenas uma desculpa para se perder nos próprios pensamentos.
A semana tinha sido estranha. Silenciosa demais. Ele tentava seguir sua rotina, agir como sempre, mas algo dentro dele estava inquieto.
O som de batidas suaves na porta o trouxe de volta. Antes que pudesse responder, Anna entrou, fechando a porta atrás de si. Ela o observou por alguns segundos, sem dizer nada, antes de caminhar até ele e se sentar em seu colo.
— Você está aéreo. — Ela disse, estudando seu rosto. — Falando pouco.
Paul passou as mãos pelos braços dela, num gesto automático, mas manteve-se calado.
— O que foi? — Anna perguntou, inclinando-se para olhá-lo nos olhos. — É por causa do dia em que chegamos? Você não gostou de eu ter me divertido com nossos amigos?
Paul estranhou a pergunta, balançando a cabeça negativamente.
— Não tem nada a ver com isso. Você sabe que eu nunca ficaria chateado com algo assim.
Anna o analisou por mais alguns segundos, percebendo que ele estava escondendo algo.
— Então o que é? — Sua voz saiu mais suave. — Fala comigo.
Ele desviou o olhar, como se buscasse as palavras certas.
— Eu acho que … — Paul voltou a olhar para ela. — ... Eu acho que julguei mal toda a situação.
Anna se ajeitou no colo dele, intrigada.
— Como assim?
Havia frustração e culpa em seus olhos.
— Quando reencontramos o Celo, quando fomos atrás dele, naquele dia, eu senti algo diferente. Não era só irritação. Tinha algo mais … algo mais profundo.
Anna continuou em silêncio, permitindo que ele desenvolvesse o pensamento.
— E aí, depois, quando tudo aconteceu … — Paul passou a mão pelo braço de Anna, visivelmente tenso. — ... Eu percebi que talvez tenha entendido tudo errado. Que criei um contexto na minha cabeça e, em cima disso, tomei decisões que não deveria.
Anna estreitou os olhos, tentando decifrar exatamente o que ele queria dizer.
— Você acha que forçou a barra?
Paul soltou um suspiro mais denso, mais carregado.
— Acho não. Tenho certeza.
Anna deslizou os dedos pelos cabelos dele, em um carinho sutil.
— Você não fez nada sozinho, Paul.
Ele sorriu timidamente, mas havia amargura em seu rosto.
— Mas eu iniciei. Eu incentivei. Porque na minha cabeça, tudo fazia sentido. Eu achei que estava apenas … conduzindo algo que já estava acontecendo. Mas agora … agora não tenho mais tanta certeza.
Anna segurou o rosto dele entre as mãos, forçando-o a encará-la.
— Você sempre foi confiante. Seguro das suas escolhas. O que mudou?
Paul respirou fundo.
— A maneira como Celo reagiu. A forma como ele olhou para mim naquela noite.
Ele fez uma pausa antes de continuar, sua voz mais fraca, quase impotente.
— Eu me orgulho de saber ler as pessoas. De entender o que querem, o que precisam. Mas e se … eu interpretei tudo errado?
Anna ficou em silêncio por um momento, processando as palavras dele.
— Se você realmente acredita que errou … então a pergunta agora é: o que você vai fazer com isso?
Paul abaixou a cabeça, fechando os olhos. Ele ainda não tinha aquela resposta. Mas sabia que precisava encontrá-la. Ele continuava inquieto, perdido em pensamentos, quando Anna quebrou o silêncio.
— O que exatamente te fez pensar que interpretou tudo errado?
Ele suspirou, passando a mão pelo rosto.
— Eu não sei, Anna. Eu só … sinto que não enxerguei as coisas como deveria.
Anna inclinou a cabeça, analisando-o.
— Eu entendo seu lado, Paul, mas … sinceramente? Eu achava que o Celo queria que tudo aquilo acontecesse.
Paul franziu a testa.
— Como assim?
— Quero dizer, ele nunca nos afastou. Nunca tentou impedir. Pelo contrário. Eu estive com ele a maior parte do tempo, lembra? Estávamos próximos, trocando carícias, confidências … Ele nunca demonstrou desconforto.
Paul ficou em silêncio por alguns instantes, processando as palavras da esposa.
— E se estivermos interpretando errado? — Ele disse, por fim.
Anna cruzou os braços, curiosa.
— Errado como?
— E se a gente só viu o que queria ver? O que nos fazia bem?
Anna ergueu uma sobrancelha, curiosa.
— Você acha que ele não queria?
Paul hesitou antes de responder.
— Eu acho que, no mínimo, ele estava confuso. E nós, como o casal experiente, deveríamos ter sido mais cautelosos. Pode até ser que ele quisesse, mas era nossa obrigação prepará-los para o que viria a seguir.
Anna ficou pensativa por alguns segundos, depois soltou um pequeno sorriso nervoso.
— Você queria tanto assim a Mari? — A pergunta veio sem rodeios. — Parece que ela mexe com você até demais.
Paul a encarou, surpreso com a afirmação.
— Você sabe que eu não sou assim.
Anna não estava convencida.
— Sei?
Paul respirou fundo, escolhendo as palavras com cuidado.
— O que é normal para nós, apenas diversão, não pode ser a causa de sofrimento para os outros.
Anna observou a expressão do marido e percebeu que ele realmente estava levando aquilo a sério.
— E então? O que você pretende fazer?
Paul olhou para ela, decidido.
— Procurar o Celo e ter uma conversa mais verdadeira. Pedir desculpas, assumir que errei.
Anna continuou observando-o, como se tentasse enxergar além das palavras.
— E se ele não quiser te ouvir?
Paul deu um meio sorriso, sem confiança.
— Então eu vou ter que lidar com isso.
Anna estreitou os olhos, analisando cada movimento do marido.
— Isso não parece ser só sobre o Celo.
Paul suspirou e desviou o olhar, fixando-se em um ponto qualquer da mesa.
— Claro que é.
Anna riu baixo, cética.
— Paul … eu te conheço. Você está assim desde que saímos daquela cidadezinha. Desde que levamos a Mari até ele. Você nunca ficou tão afetado depois de uma experiência.
Paul se recostou na cadeira e fechou os olhos por um instante.
— Eu quebrei um acordo, Anna. Me sinto um traidor. Me sinto alguém indigno de confiança.
A confissão pairou no ar entre os dois. Anna cruzou as pernas, sem demonstrar surpresa.
— Não foi só você. Todos nós fizemos isso. Juntos.
— Mas eu deveria saber melhor. Eu deveria ter parado.
Anna inclinou a cabeça.
— E por que não parou?
Paul abriu a boca, mas nada saiu. Ele passou a língua pelos lábios e respirou fundo.
— Porque, naquele momento, parecia ser o certo.
Anna o encarava, sem entender.
— Certo?
— Sim. Eu não sei explicar, mas parecia que … Mari precisava daquilo. Como se, por um instante, tudo estivesse no lugar. Mas agora …
Anna observou a hesitação dele, depois balançou a cabeça.
— Você está se culpando demais.
— E deveria me culpar menos? — Ele retrucou.
— Sim. — Ela disse com convicção. — O que aconteceu entre vocês dois foi um erro dentro do nosso estilo de vida. Mas e daí? Isso não significa que você destruiu a vida dela. Nesse mundo, não se pode errar sozinho. Precisa do outro.
Paul soltou uma risada seca.
— Talvez eu tenha sido o empurrão final.
Anna descruzou as pernas e se inclinou para frente, apoiando os cotovelos na mesa.
— Você acha que Mari nunca teve problemas antes de você? Você realmente acha que, se não fosse por aquela noite, tudo entre ela e o Celo teria sido perfeito?
Paul passou a mão pelos cabelos, frustrado.
— Eu não sei. Mas sei que agora eles estão afastados, e eu tenho culpa nisso.
Anna ficou em silêncio por um momento antes de dizer:
— Você quer consertar isso?
Paul hesitou.
— Não é sobre consertar. Eu não posso resolver os problemas deles, mas também não quero ser o motivo pelo qual um casal se destruiu.
Anna estava frustrada, mas não desistiu.
— Então, além de conversar com o Celo, o que pretende fazer?
Paul não tinha aquela resposta.
— Se eu soubesse, já teria feito.
Anna se levantou e se aproximou dele, passando as mãos pelos ombros do marido.
— Então, talvez seja hora de parar de pensar demais e agir.
Paul inclinou a cabeça para trás, olhando para ela.
— E se agir só piorar as coisas?
Anna sorriu, tentando encorajá-lo
— Então, pelo menos você tentou.
Paul fechou os olhos, absorvendo as palavras da esposa. Ele sabia que, de um jeito ou de outro, aquela situação ainda estava longe de terminar.
Enquanto estavam naquele dilema, a campainha tocou. Anna trocou um olhar com o marido, surpresa. Eles não esperavam ninguém. Ao abrir a porta, encontrou Chris e Fabi. O casal entrou sem cerimônia, o semblante sério.
— Desculpem aparecer sem avisar. — Chris começou olhando diretamente para Paul. — Mas eu precisava conversar com vocês.
Paul cruzou os braços, já sentindo um incômodo crescente.
— Sobre o quê? — Perguntou, direto.
— Eu me encontrei com o Celo. — Chris revelou. — E conversamos.
Paul sentiu o estômago revirar. Ele trocou um olhar rápido com Anna antes de encarar Chris.
— E pelo jeito, resolveu falar de mim pra ele? — A irritação em sua voz era evidente. — Não era um problema seu.
— Eu só queria ajudar, Paul. — Chris manteve a calma. — Eu me abri com ele, tentei mostrar quem você realmente é. Contei sobre sua lealdade, sobre como sempre coloca os amigos acima de tudo. Deixei claro que você não é o cara frio ou insensível que ele pode estar imaginando.
Paul bufou, interrompendo-o.
— Tudo isso também pode ser entendido da forma errada. Como uma manipulação emocional. Você deveria ter me consultado antes de qualquer coisa.
Chris sustentou o olhar firme.
— Não me arrependo. O que está feito, não tem volta.
Anna interveio, tocando o braço do marido para acalmá-lo.
— Vamos respirar um pouco, ok? Ninguém aqui é inimigo de ninguém. — Ela olhou para Chris e Fabi. — Eu sei que vocês tinham as melhores intenções.
Paul resmungou, revirando os olhos.
— De boas intenções, o inferno está cheio.
Fabi cruzou os braços, olhando para Paul com reprovação, mas entendia o que ele poderia estar sentindo.
— Sabemos disso, Paul. Mas não significa que a gente deva ficar parado sem tentar consertar as coisas. Você mesmo não quer perder essa amizade, certo?
Paul não respondeu de imediato. Ele massageou a têmpora, sentindo o peso da conversa. Anna, percebendo sua hesitação, decidiu insistir.
— Olha, eu entendo por que fizeram o que fizeram. E você deveria entender também, Paul. Apesar de tudo ter saído do controle, você não é um vilão. Você agiu da forma que achou correta no momento. Não foi um crime premeditado. E eu tenho certeza de que, tanto o Celo quanto a Mari, chegarão à mesma conclusão.
Paul suspirou, se deixando cair no sofá. Seu olhar se voltou para Anna, que o observava com um sorriso enviesado.
— Você está muito preocupada com o que eles vão pensar, não é? — Anna provocou o marido. — Ou seria … especialmente com o que a Mari vai pensar?
Paul estava indignado.
— Você só pode estar brincando.
— Não estou — Anna insistiu, um brilho de provocação nos olhos. — Estou só dizendo que você está se martirizando mais do que deveria.
Paul abriu a boca para retrucar, mas desistiu. Ele estava exausto.
— Ok. Vocês venceram. Talvez eu esteja me martirizando à toa.
Os amigos ainda conversaram por algum tempo, mas com Paul aéreo, a conversa não rendeu como o esperado. Chris e Fabi se despediram, pois já tinham cumprido seu objetivo.
Anna percebeu que Paul continuava distante. Ele estava sentado no sofá, olhando para a TV, mas ela sabia que ele não estava realmente assistindo nada. Sua postura estava rígida, os ombros tensos, e as mãos apertadas no colo. Ela se aproximou, sentindo o peso do silêncio entre eles.
“Paul parece tão … diferente”, ela pensou, mas não disse nada. Em vez disso, sentou-se ao lado dele, escorregou a mão sobre sua perna, e sentiu a musculatura dele estremecer sob o toque. Ele virou o rosto para ela, mas seus olhos não tinham aquele brilho que ela conhecia tão bem.
— Paul. — Ela sussurrou, a voz preocupada. — Você está bem?
Ele respirou fundo, como se estivesse lutando para encontrar as palavras.
— Estou … cansado, Anna. A semana foi puxada.
Ela não acreditou totalmente. O conhecia bem demais. Se ele estava tenso, ela conhecia o remédio perfeito para aquilo. Sexo intenso, algo que sempre o fazia esquecer de tudo.
Sem mais hesitação, Anna deslizou a mão para dentro da calça dele, sentindo o pau ainda mole reagir ao seu toque. Paul suspirou, mas não foi de prazer. Era mais uma exalação de resignação.
— Anna … — Ele começou, mas ela interrompeu com um beijo.
Um beijo profundo, cheio de intenção, tentando acender algo dentro dele. Foi correspondida, mas o beijo era mecânico, sem aquele fogo que costumava queimar ao mínimo toque.
Ela não desistiu. Puxou a camisa dele para cima, deixando o corpo dele exposto, e começou a beijar o pescoço, mordiscando suavemente a pele. Suas mãos exploraram o peito, os dedos encontrando os mamilos e beliscando-os levemente. Paul soltou um grunhido, mas ainda parecia distante.
— Vamos para o quarto. — Anna disse no ouvido dele, com a voz baixa e sensual.
Ele hesitou, mas acabou concordando com um aceno de cabeça. Anna o puxou pela mão, guiando-o pelas escadas. Assim que entraram no quarto, ela o empurrou gentilmente para a cama, e ele caiu de costas, os olhos fixos no teto.
Ele realmente parecia não estar a fim, mas o desejo tomava conta de Anna. Ela subiu na cama, sentando-se sobre ele, e começou a tirar a própria roupa. Cada peça que caía no chão era um convite, uma tentativa de despertar algo nele. Quando ficou nua, ela se inclinou para frente, beijando-o novamente, suas mãos explorando o corpo do marido.
— Me fode, Paul. — Ela pediu, com a voz carregada de urgência. — Eu preciso de você.
Ele finalmente reagiu, as mãos deslizando pelo corpo dela, mas o toque era rápido, quase apressado. Ele a virou de costas, posicionando-se entre as pernas dela. Não houve preliminares, nenhum estímulo, apenas uma penetração direta e automática.
— Espera, assim … — Ela disse, mas era tarde demais.
Ele a penetrou com um empurrão, e Anna soltou um gemido estranho: metade prazer, metade desconforto. Paul começou a estocar, mas o ritmo era irregular, sem a sincronia que costumavam ter.
Anna tentou se concentrar no prazer, tentou se imaginar em outro lugar, mas a falta de conexão era irritante. Ela olhou para o rosto dele, e viu que ele estava olhando para longe, como se estivesse em outro lugar.
— Paul … — Ela tentou novamente, mas ele não respondeu.
Ele continuou a estocar, como se estivesse apenas cumprindo uma obrigação. Anna fechou os olhos, tentando se perder na sensação, mas era impossível.
Finalmente, ele parou, soltando um suspiro que parecia mais de alívio do que de prazer. Mesmo tendo gozado, nada daquilo era normal.
Paul se afastou, se deitando de costas ao seu lado. Anna permaneceu ali, nua, sentindo o frio da ausência dele, mesmo tão perto.
— Paul … — Ela sussurrou, quase temendo quebrar o silêncio.
Ele não respondeu. Apenas virou ainda mais o corpo, oferecendo-lhe as costas como um muro intransponível.
Anna o observou na penumbra do quarto, onde a luz pálida da lua desenhava contornos suaves no rosto do marido. Mas aqueles traços que antes conhecia tão bem agora pareciam estranhos, distantes, como se uma parte dele estivesse em outro lugar, longe do corpo que descansava ao seu lado.
Queria questioná-lo, provocá-lo, arrancar dele alguma reação. Mas o único som que obteve foi um suspiro profundo, pesado, como se ele já tivesse desistido daquela conversa antes mesmo de começar.
Um vazio apertou seu peito. Tentou se aninhar nele, buscando refúgio no calor familiar, mas Paul não se moveu. Nem um resquício de resposta. Era como abraçar um fantasma, um corpo presente, mas uma alma que já não estava mais ali.
Fechou os olhos, tentando dissipar a inquietação, forçando-se a encontrar algum conforto na escuridão. Mas a verdade pulsava em sua mente como um eco incômodo: aquilo não era apenas uma noite ruim. Algo estava errado. Algo que ela ainda não conseguia nomear, mas que temia descobrir.
E assim, entre pensamentos desencontrados e perguntas sem respostas, o sono finalmente a venceu.
O cheiro de café fresco pairava no ar, mas o ambiente ao redor da mesa estava longe de ser acolhedor. Anna mexia distraidamente na xícara, o olhar perdido no líquido escuro, enquanto Paul se servia de uma fatia de pão.
— Dormiu bem? — Ele perguntou, tentando soar casual.
— Uhum. — Foi a única resposta que recebeu.
Paul suspirou, observando-a por um instante antes de se sentar à sua frente.
— Anna … — Ele começou escolhendo bem as palavras. — Sobre ontem à noite … me desculpe …
Ela ergueu os olhos, fitando-o com uma expressão impassível.
— Aham.
Paul sabia que estava errado, que nada do que dissesse seria suficiente.
— Não vai falar nada?
Anna ergueu os ombros levemente, pegando uma fatia de mamão e levando-a à boca sem pressa. Paul sabia reconhecer aquele comportamento. Era o silêncio carregado de significado, o castigo frio e calculado que ela oferecia quando estava profundamente irritada.
Ele deslizou a mão pela mesa, tentando tocar a dela, mas Anna recuou sutilmente, levando a xícara de café aos lábios.
— Anna, por favor. — Ele insistiu.
Ela pousou a xícara na mesa, o encarando finalmente.
— O quê? — Havia decepção nos olhos dela.
— Você tá claramente chateada. Eu só quero que a gente converse. — Ele suplicou.
Anna soltou uma risada sem graça, nervosa.
— Engraçado … Ontem à noite, você não queria conversar.
Paul fechou os olhos por um segundo, tentando manter a paciência.
— Eu não queria discutir, é diferente.
Anna inclinou a cabeça, fingindo considerar.
— Entendi.
— Anna … — Ele insistiu.
Ela empurrou a cadeira para trás e se levantou, pegando o celular na bancada e a bolsa. Já estava arrumada, pronta para sair. Paul acompanhou seu movimento com o olhar, já sabendo que não teria mais espaço para continuar a conversa.
Antes de sair da cozinha, Anna lançou um último olhar na direção dele, um olhar afiado, carregado de algo que Paul não soube definir completamente.
— Pelo jeito, não é só Mari e Celo que estão em crise, não é? Talvez, você devesse se concentrar um pouco mais no que está a sua frente.
E então, sem esperar resposta, virou-se e foi embora, deixando Paul sozinho com seu café amargo e a sensação incômoda de que aquela conversa estava longe de terminar.
Continua …
*Frase da música: “Na Primeira Manhã”, de Alceu Valença.
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