CAPÍTULO 32
O ALTO PREÇO DA MAGIA
A vitória sobre os lobos cobrou um preço muito caro de Margie que, a cada dia que passava, via sua vida ir se transformando.
Não foi uma transformação para pior ou melhor. Apenas um retorno à normalidade. Esse foi o valor cobrado por sua vitória e a descoberta disso foi gradual. Anos depois, ela ficaria agradecida por ter sido a primeira a sentir os efeitos, melhor dizendo, o fim dos efeitos que da magia daquela ilha exercia sobre ela.
Os dois primeiros sinais aconteceram ao mesmo tempo. Um deles foi o ferimento de sua perna que, ao contrário do que era de se esperar, não se curou da forma rápida que era o normal. A ferida não se curou sozinha e foi preciso da intervenção de Cahya que, usando algumas ervas curativas, fabricou uma pomada que impediu a inflamação e ajudou na cicatrização. Da mesma forma, a fratura em sua perna demorou muito para se consolidar e só não deixou sequelas por causa das providências porque a intervenção de Milena logo depois da luta com Sétan foi precisa e correta. O fato da amiga ter colocado o osso no lugar e imobilizado sua perna com o uso das talas improvisadas, evitou que o osso se consolidasse fora de lugar e a deixasse com a perna defeituosa, um problema que ela teria que conviver para sempre.
Entretanto, não foi essa a causa da dor que a atingiu e a modificou para sempre. O que a deixou chateada ao descobrir que o encanto que permitia sua interação com Chantal acabou. A pantera, depois da expedição da caça ao lobo, ainda a acompanhou durante seu regresso à Enseada, porém, não foi até o fim da viagem. Quando estava próxima de seu destino, Chantal e Neve se colocaram diante de Margie e ficaram olhando para ela que, parecendo compreender o que as duas onças queriam dizer, pediu para que Milena a ajudasse a apear de Raio e tentou ir até elas, mas sua perna ferida não permitia que caminhasse.
Parecendo entender isso, Chantal e Neve caminharam até ela e ficaram na sua frente. Margie se abaixou e fez carinho em suas cabeças e depois, para espanto de Milena que assistia a cena calada e sem entender o que acontecia, falou:
– Eu também amo vocês. Fiquem em paz e saibam que eu sempre estarei aqui.
Chantal apenas balançou a cabeça e arreganhou os dentes naquele rugido mudo que ela costumava fazer quando queria dizer alguma coisa, mas Neve foi além disso e lambeu a face da ruiva, colhendo dali as lágrimas que escorriam. Depois disso, as duas onças viraram as costas para Margie e começaram a se afastar, no começo lentamente, mas aos poucos, aceleraram seus passos até sumirem em meio ao capim alto com altura suficiente para ocultar seus corpos.
Só então a Milena perguntou:
– O que está acontecendo, Margie? Aonde elas vão?
– Isso foi uma despedida. Elas não vão mais voltar e, se um dia voltarem, serão apenas duas onças.
– Como assim? Não entendi!
– O encanto acabou, Milena. Acabou…
O nó na garganta de Margie impediu que ela continuasse a falar e Milena preferiu não tocar mais no assunto. Ajudou a amiga a montar Raio e completaram o resto do percurso em silêncio.
Como se não bastasse a dor de ver sua ligação com os felinos encerrada, Margie ainda foi surpreendida com a atitude de Milena depois que chegaram em casa. Ao contrário do que ela esperava, depois de tantas juras de amor, aquela que foi sua amante durante tantos dias, voltou a agir como se nada tivesse acontecido entre elas.
Não que Milena começasse a agir como a garota mimada que era quando chegaram à ilha. O que aconteceu é que ela se dedicava apenas aos seus afazeres, cuidando das vacas e dos cavalos, providenciando para que nunca faltasse leite para o sustento de todos e, para piorar, demonstrar aquela paixão por Henrique. A loira não evitava Margie, mas agia com ela da mesma forma que agia com todo mundo.
A mudança que Margie notou em Milena tornou-se evidente quando, depois de curada, se aproximou dela com o claro propósito de transar. Sua intenção foi benvinda, porém, não foi como quando estavam na selva, o que a deixou chateada, pois aquilo para ela era sexo pelo sexo, sem o amor que ela sentia antes.
Margie agora era respeitada. Sua aventura com Sétan era comentada nas reuniões que eles faziam nas noites de luar e ela tentava levar isso na brincadeira, desmerecendo seu próprio sacrifício, enquanto seu coração sangrava, sem entender o que acontecia com Milena.
Enquanto isso, o progresso na Enseada era visível. Depois de descobrir a existência de ferro na encosta da montanha, Na-Hi não parou mais de inovar. A reconstrução da casa grande foi abandonada e ela resolveu construir seis outras para substituí-la. Uma casa para cada uma das mulheres que viviam naquele lugar. A construção era simples, contendo um quarto menor para a mulher que a habitaria e um grande para seus filhos. Depois disso, a coreana ainda construiu um salão enorme e ao seu lado de uma cozinha espaçosa, agora com um fogão a lenha construído para ficar igual o que elas conheciam antes de chegarem à ilha e beneficiada com água corrente com o sistema de bica d’água que ela construiu.
Essa bica d’água desviava a água de um ponto do riacho que ficava acima da cachoeira e sua construção só foi possível por causa das picaretas que foram fabricadas e da força incomum do Nestor. Para levar a água até a residência, ela usou os bambus mais espessos que conseguiu encontrar e, com sua engenhosidade, fez um desvio que permitia desviar o fluxo de água para a roça, o que permitia a irrigação no caso de acontecer um período com poucas chuvas.
Na-Hi cuidava de construir as casas, mas não parava de fabricar novas ferramentas, beneficiando a todos. Utilizando o minério de ferro e a argila para fazer os moldes, eles já contavam com serras, marretas, martelo e até mesmo pregos, o que facilitava muito quando tinham que fixar as ripas de madeira para fazer os telhados. Milena e Henrique construíram uma mangueira melhor e mais apropriada para a lida com o gado e Pâmela ganhou alguns objetos que a ajudavam a produzir tecidos de juta que eram usados tanto para o fabrico de roupas como para sacos que eram utilizados no transporte de tudo o que produziam. Com o talento recém-adquirido de Diana de moldar madeira, todas as ferramentas receberam cabos apropriados, independente do formato exigido para cada uma delas.
O projeto para o próximo ano, segundo Na-Hi, era construir uma carroça, mas ela estava tendo dificuldades em convencer Milena a treinar alguns cavalos para servirem como animal de tração. A loira, todas as vezes que Na-Hi tocava no assunto, respondia antes de se afastar dela:
– Nem pensar! Meus garotos não são nenhum jumento para puxar carroça.
Margie participava de tudo isso, sempre procurando colaborar, mas agia como se nada daquilo lhe dissesse respeito. Sua última descoberta tinha sido a de que, quando o inverno acabou, o efeito do sol em seu corpo não era mais percebido. Ela era apenas a garota com a pele extremamente branca em meio àquelas mulheres que reluziam quando ficavam expostas aos raios solares.
Nada disso afetava a garota. O que a afetava de verdade era a indiferença de Milena que a tratava da mesma forma que aos outros e também a saudade que sentia de Chantal. Ela se questionava sobre o motivo de não se sentir assim em relação ao Neve. Ela o vira nascer e crescer, sempre fazendo bagunça e incapaz de agir com disciplina, como se tivesse herdado dela essa característica, no entanto, a ausência dele não a afetava como a de Chantal.
Margie poderia ter Milena em seus braços sempre que quisesse. Mas isso para ela não era suficiente. Ela queria mais do que sexo. Ela queria o amor que recebeu dela durante as noites tórridas que tiveram naquela jornada. Tentava compensar isso transando com o Henrique ou o Nestor que levava para sua casa sempre que queria e, na maioria das vezes, com uma ou duas das outras mulheres que sentiam prazer em lhe fazer companhia. Foi assim que ela ficou grávida pela quarta vez, assim como todas as outras, porém, ela ficou estarrecida quando foi para a caverna e descobriu que o efeito que antes existia mais para ela que também não era afetada, enquanto continuava agindo sobre os demais. Para ela foi apenas era orgia em que o sexo era praticado de forma mecânica. Para piorar, ainda teve que assistir Milena sendo fodida pelos dois homens e transado com a Diana e a Pâmela, gozando horrores.
Foi logo depois da visita à caverna que ela não resistiu e resolveu conversar com a Milena, usando a falta da magia que parecia afetar apenas a ela, e perguntou:
– Milena, me fala uma coisa. Você tem ido na caverna com alguém?
– Só de vez em quando. O pessoal não se anima muito a ir lá por causa do compromisso que fizemos de só usar a caverna quando estivéssemos todos juntos.
– Mas mesmo assim você vai. Você não se sente mal em quebrar esse compromisso?
– Ah! Tem hora que sinto sim. Só que tem dias que eu fico ansiosa por uma trepada especial e arrasto alguém para lá.
– E por que você nunca me chamou para ir com você?
– Não sei. Acho que é porque você se mudou muito. Vive quieta pelos cantos e nem reage mais quando os outros brincam com você.
– Foi você que me disse que, caso eu não desse trela, eles paravam de me zoar.
– Verdade. Eu falei mesmo. Mas não era para ficar tão apática assim. Parece que depois que a Chantal foi embora você se tornou uma pessoa sem graça.
“Quer dizer então que você se lembra do que falamos. Então todas aquelas juras de amor eram puro fingimento?” – Pensou Margie, mas não querendo começar uma discussão, mesmo estando dominada pela raiva, falou apenas:
– Tudo bem. Você me acha sem graça. Mas essa é a vida. A gente vai ficando mais velha e aprendendo.
– A gente não está ficando mais velha, Margie. Nenhum de nós envelheceu um dia sequer desde que chegamos aqui. Nossos cabelos não crescem e nada mudou na nossa aparência.
Margie ficou pensando no que acabara de ouvir. Realmente, Milena tinha razão. Ela não sofria mais as influências da magia da ilha e, não tinha sofrido nenhuma alteração física.
“Pena que são apenas as físicas. Eu preferia que as outras alterações não tivessem acontecido.”
Aflita com a insensibilidade de Milena e com o fato de ela ter deixado bem claro que todo aquele romance que viveram era uma mentira, Margie deu uma desculpa qualquer e se afastou dali, encerrando a discussão.
A vida continuou calma e foi no quinto ano que essa calma provocou uma situação que ia alterar muitas coisas. Diana, sem ter muito que fazer, gastava todo seu tempo ocioso em visitar a ilha com a visão de Áquila. Um belo dia, por causa de um comentário de Pâmela de que ela só usava a águia para ver o que havia ao sul, comentou:
– Você já deve conhecer de cor e salteado o sul dessa ilha. Por que você não tenta descobrir o que tem ao norte?
Diana, depois de dizer que não tinha pensado nisso, programou para o dia seguinte uma exploração do lado desconhecido da ilha e foi o que ela fez.
No primeiro dia, Áquila sobrevoou a vale que existia entre as duas montanhas, aquela que antes estava sempre coberta por nuvens negras e a outra que nada mais era um prolongamento da elevação rochosa que existe ao norte da enseada e Diana informou que ali só existia uma floresta, prometendo já no dia seguinte iria fazer uma exploração ao longo da Praia dos Tubarões que começava logo depois da elevação rochosa e se perdia de vista.
Durante o segundo dia a resposta foi a mesma. Extensões cobertas de árvores se estendiam entre a praia e a montanha. A única informação, que acrescentou algo de novo, era que a montanha se estendia em diagonal à praia e que a área entre as duas se alargava enquanto avançavam. Mas no terceiro dia, Diana viu algo que a deixou impressionada.
– Pessoal, vocês não vão acreditar. Achei um lugar que mais parece a paisagem de um sonho. Nunca vi nada tão bonito!
– Mais bonito que a Enseada? – Perguntou Na-Hi.
– Muito mais. É como eu disse, Parece algo saído da parte feliz de um conto de fadas.
– Ah é? – Perguntou Cahya descrente e em seguida pediu: – Então conta para a gente o que você está vendo.
– Existe um lago de águas límpidas e muito maior que o lago que temos aqui, Acho que chega a ser cinco vezes maior. Esse lago é alimentado por vários riachos e, depois dele, forma um rio que vai desaguar no mar. Um dos riachos desce da montanha forma uma sequência de cachoeiras de sonhos. Do lado sul do lago, há uma planície que se estende por quilômetros, coberta de com capim e flores de todos os tipos. Essa planície é limitada ao norte pelo lago, ao sul e leste por uma colina coberta de árvores e a oeste pela montanha. Quando o dia amanhece, o lago reflete os raios do sol e o ambiente fica todo dourado. À tarde eu não vi, mas o efeito não deve ser diferente. É tudo muito lindo.
– Eu gostaria de ir ver esse lugar. – Disse Margie demonstrando interesse e perguntou para Diana: – É muito longe daqui?
– Não sei Margie. Eu não tenho noção da velocidade que o Áquila desenvolve para poder calcular a distância.
A conversa pareceu morrer ali, mas não para Margie que não parava de pensar na descrição que a Diana dera a respeito do local. Ela pensava tanto nisso que um dia arriscou a perguntar para a Diana:
– Quanto tempo o Áquila gasta para vir do rio até aqui?
– Não sei. Esse negócio de calcular tempo é com a Na-Hi e com o Henrique.
– Mas a gente pode calcular, não pode?
– Eu não posso. Como já te disse, não tenho nenhuma noção desse negócio de calcular o tempo.
Margie, diante dessa resposta, percebeu que para ter saber o que queria, precisava da ajuda de Na-Hi e, a partir desse dia, começou a infernizar a vida da coreana. A todo o momento ela mencionava algo a respeito de ser importante saber a velocidade que Áquila se movia.
Embora para Na-Hi aquilo não tivesse nenhum sentido, o fato de ver Margie voltar a se interessar por alguma coisa, fez com que ela pensasse melhor. Aquilo poderia ser uma forma de terem a velha e maluca ruivinha de volta. Então ela concordou e colocou em prática um projeto no qual vinha pensando nos últimos tempos e improvisou um relógio de sol. Com ele, poderia calcular o tempo que Áquila levaria para percorrer a distância entre o rio e a Enseada.
Diana aceitou usar Áquila para aquele teste, mesmo reclamando que não via nenhum sentido naquilo. Então chegou o dia de realizarem o teste. Isso demorou mais de cinco dias porque o Henrique se negava a dar as informações necessárias. Elas precisavam saber, também, qual a velocidade que uma águia desenvolve ao voar.
Com muito custo, conseguiu convencer Henrique a lhe dar as informações e a resposta dele foi um balde de água fria nas pretensões de Margie. Ele informou que uma águia desenvolve uma velocidade que varia entre 45 a 50 km/h, mas que pode voar mais rápido e chegar aos 130 km/h. Mas isso não era tudo, completou ele, pois em um mergulho, essa velocidade pode atingir a incrível marca de 320 km/h.
Na-Hi ficou desanimada, mas logo Margie sugeriu:
– Isso é muito fácil de resolver. A Diana controla a Áquila para que ela voe na velocidade normal, quero dizer, a mais lenta que conseguir e nós vamos considerar que seja a de 45 km/h.
– Não deixa de ser uma boa ideia. Mas eu acho melhor considerar os 50 km/h, pois já notei que, entre todas as águias, é o Áquila que desenvolve a maior velocidade. Mesmo quando estão voando tranquilamente.
Ficou determinado então que era essa a velocidade a ser considerada. Áquila, atendendo ao comando de Diana, ficou sobrevoando o rio até que Na-Hi dissesse que ele poderia voar em direção à Enseada. Quarenta minutos depois, Águia pousava ao lado de Diana. O tempo que excedeu às duas horas, Na-Hi executou um cálculo e concluiu que era um terço de uma hora, o que significava vinte minutos. Os cálculos mostram que a distância entre a Enseada e o rio era de aproximadamente 33 quilômetros. Margie, dizendo que não precisava ser texto e resolveu considerar que a distância seria de 35 quilômetros.
Como já era tarde, decidiram esperar o dia seguinte para fazer o mesmo teste, desta vez partindo do local descrito por Diana. Os mesmos procedimentos foram adotados e, dessa vez, o tempo gasto por Áquila foi de duas horas e vinte minutos, o que significava que a distância era de aproximadamente oitenta e dois quilômetros.
Margie considerou os dois dias que gastavam para chegar ao rio quando caminhavam e fez os cálculos, descobrindo que para chegar à lagoa descoberta por Diana seriam necessários cinco dias. Ela sabia que só tinha que levar provisões e uma arma, embora achasse que esse último item não seria necessário uma vez que a paz reinava na Enseada desde que Sétan fora derrotado. Talvez, pensou ela, não precisaria nem de provisões, pois sabia que nas florestas poderia encontrar frutas em quantidade e variedade suficiente para saciar sua fome e, pela experiência que tinha em perambular por aquela ilha, água potável também não seria problema.
Quando ela anunciou a todos sobre sua intenção de ir visitar o local para conhecê-lo, todos foram contra. Porém, ninguém duvidava que, quando menos esperassem, ela já teria partido. Tanto é que Diana não se recusou a dar a elas todas as informações que precisava:
– Você deve seguir pela praia sempre. Depois de alguns dias, você vai ver uma árvore enorme caída na areia. Lá você vai encontrar uma trilha. Basta seguir por ela e você encontrará o lago. Não tem como errar. Ah! E se você por acaso não ver a árvore, não tem problema porque logo vai chegar ao rio. Siga pela margem dele que vai chegar ao mesmo lugar, só vai demorar mais tempo.
Foi assim que, no terceiro dia depois do anúncio de Margie, ela não estava em sua casa e seus filhos, agora em número de sete, já tinham sido alimentados quando deram pela ausência dela. Al e Neto, com seis anos, levaram os menores até a cozinha onde Cahya lhes forneceu o desjejum.
O que ninguém sabia é que Milena também não se encontrava em sua Residência. Ao contrário de Margie, ela mesma tinha levado os alimentos até sua casa onde seus filhos, mais tarde, foram encontrados pelos outros, já alimentados e brincando.
Depois de cruzar o lago e descer pelo caminho que a levaria à Praia dos Tubarões, Margie viu Milena ladeada por Tornado e Ventania que, com um sorriso, falou para ela:
– Se você pensa que vai se divertir sozinha, está muito enganada. Monta aí.
– Tira essa rédea da Ventania, quero montar igual você. – Pediu Margie tentando disfarçar a emoção que sentiu ao ver Milena aguardando por ela.
– Melhor não, Margie. A Ventania não é o Raio. Eu não vou correr o risco de deixar ela te derrubar. A última coisa que quero é ter ver ferida.
Feliz por saber que, com a ajuda de Milena, o tempo gasto em sua nova aventura seria reduzido à metade. Prendeu as coisas que trazia consigo na garupa da égua e a montou usando uma pedra para poder fazer isso sem ajuda da Milena. Já montada, pegou o arco que Milena lhe estendia e falou:
– Não sei qual a serventia disso!
– Por quê? – O fato de você não saber atirar não quer dizer que uma hora não pode ser útil.
– Hum! Lá vem você, sempre zoando comigo.
– Não estou zoando, querida. Cada um tem as suas especialidades. Você pode não ser boa com um arco, mas é incomparável quando usa essa lança. Nem mesmo a Na-Hi, que foi treinada em artes marciais, se iguala a você.
O elogio fez com que Margie tremesse de emoção. Não pela citação de sua habilidade em si, mas pelo fato de Milena usar o termo querida, em vez de seu nome. Sem trocarem muitas palavras, as duas jovens seguiram em frente e pouco falaram durante o dia todo. Margie perdida em seus pensamentos e tentando entender qual o motivo que levara Milena a acompanhá-la, respondia com monossílabos às perguntas que a amiga lhe fazia. Parecia que, a cada quilômetro que se afastavam da Enseada, a loira ficava cada vez mais falante e não escondia sua alegria.
Quando o sol se pôs, elas escolheram um local para passarem a noite e foram acampar sob uma árvore frondosa, cuja copa fechada se estendia sobre a areia, quase chegando até onde as ondas se quebravam.
– Se não fossem os tubarões, eu ia entrar nessa água, Olha que coisa linda o mar aqui. – Falou Margie olhando para o leste.
– Pois eu não estou vendo nenhum tubarão. Acho que eles ficam lá para o lado da Enseada.
Dizendo isso, Milena se levantou e foi tirando toda a roupa e já, completamente nua, correu ao encontro das ondas. Margie, gritando para que ela não fizesse isso, correu atrás, mas não entrou na água. Em vez disso, ficou atenta para ver se via algum tubarão se aproximando.
– Entra logo, Margie. Deixe de ser medrosa. – Insistiu Milena.
– Não Milena. É muito perigoso.
– Perigoso nada. É só não ir para o fundo. Vamos ficar no raso que os tubarões não podem nadar até aqui.
Milena ficou pensando nisso. A visão do corpo dourado de Milena, totalmente nu e sem o efeito que seu corpo recebia quando exposto ao sol na Enseada a deixava excitada e era um convite, mas, ao mesmo tempo, a ideia de que os tubarões poderiam atacar Milena, impedia que ela aceitasse. A única coisa que fez foi se banhar na parte onde as ondas corriam sobre a areia fina, fazendo isso sem tirar a roupa e atenta ao mar, sempre temendo pelo pior.
Quando Milena finalmente saiu da água, não vestiu a roupa. Em vez disso, permaneceu nua durante todo o tempo que elas gastaram assando um pedaço de carne em uma fogueira improvisada e depois ao se alimentarem. Margie olhava para o corpo perfeito da garota e ficava cada vez mais excitada. Sua voz já tremia quando falava e seu sorriso nervoso que surgia a cada comentário de Milena soava estranho para ela. A loira estava falante e mesmo seus comentários mais sem graça fazia Margie rir. Depois de devorarem o jantar, Milena falou:
– Por que você está agindo assim?
– Assim como? – Perguntou Margie já temendo ter que falar sobre um assunto que, nos dois últimos anos, tinha sido o motivo de seus sofrimentos e temia falar sobre isso, pois só faria com que esse sofrimento ficasse ainda maior. Ela temia não suportar um novo golpe representado por uma palavra de desprezo da pessoa que amava.
Entretanto, Milena não desistia:
– Você está tão fria comigo. Nem parece a garota que conviveu comigo durante tantos dias quando estávamos caçando o Sétan.
Aquilo foi demais para Margie. Afinal, a mulher que lhe dera as horas mais felizes das quais se lembrava de e depois a tratou como se fosse apenas um pedaço de carne para ser usado ao seu bel prazer, não tinha o direito de cobrar isso dela. Então falou, tentando não soar rude demais:
– Eu fria? Será por que eu estou fria com você. Hem Milena? Para mim você está sendo muito cara de pau cobrando isso de mim.
– Epa! O que está acontecendo aqui? Eu só fiz um comentário. Você não precisava reagir como se eu tivesse te agredindo.
Isso, para Margie, era o cúmulo da hipocrisia e sua raiva se sobrepõe ao sentimento que nutria por Milena. Mas a loira demonstrou ter ficado tão zangada que, depois de falar, se afastou de onde elas estavam e não conversou mais com ela. Logo foram dormir que nenhuma palavra fosse dita por qualquer uma das duas.
Entretanto, elas não conseguiram dormir e cada uma sabia que isso acontecia com a outra. Os movimentos que faziam se revirando sobre o colchonete de pena forrado com juta eram audíveis. Isso perdurou até que Margie, sem conseguir resistir, se levantou e foi se sentar na praia a uma distância que a impedisse de ouvir ou ver os movimentos de Milena. O que ela queria evitar é que a amiga ouvisse seu choro, pois as lágrimas que insistiam em molhar sua face toldavam sua visão. Sentia seu corpo fraco e suas pernas tremerem. Sentada na areia, inclinou a cabeça sobre a areia e não se controlou, deixando que seu pranto saísse livre. Com o rosto banhado pelas lágrimas que teimavam escorrer por seu rosto e caíam sobre o top de couro que usava, o deixando encharcado, ela não percebeu que, de onde estava, Milena estava deitada virada para o lado em que estava, também chorando silenciosamente.
O dia amanheceu e Margie recusou o leite que Milena aquecera para ela. Logo as duas seguiram viagem e seguiram sem trocar uma única palavra até que identificaram a árvore caída, citada por Diana como ponto de referência O sol já estava preste a sumir por trás das montanhas, o que fez com que elas decidissem deixar para atravessar a floresta no dia seguinte e se prepararam para passar a noite naquele lugar.
O clima entre as duas continuou da mesma forma e mais uma vez a cena da noite anterior se repetiu, com Milena se revirando sobre seu colchão e Margie, a uma distância suficiente para que ela não ouvisse seus soluços, chorava olhando para um mar calmo que refletia o brilho das estrelas, Sem nenhuma nuvem no céu e sendo lua nova, a impressão que se tinha era que dava para colher uma estrela apenas esticando a mão.
Na manhã seguinte, depois que Milena se alimentou e Margie mais uma vez recusou o alimento que ela lhe estendia, a loirinha perdeu de vez a calma e falou:
– Assim não dá. Eu não aguento mais.
– O que você não aguenta mais, Milena? Já vi você percorrer uma distância bem maior que essa. – Comentou Margie que realmente não entendia o que se passava na cabeça da outra.
– Não é a viagem, Margie. Eu não estou aguentando o seu desprezo. Você sequer fala comigo e fica aí amuada como se minha simples presença aqui fosse uma ofensa.
Mais uma vez, Margie estava sendo acusada de fazer exatamente aquilo que, durante tanto tempo, fora a atitude normal de Milena e a fazia sofrer. Então ela não aguentou e falou:
– Para de ser cínica, Milena. Você passou os dois últimos anos me tratando como se eu fosse uma pessoa a mais do seu grupo. Uma pessoa que você usou ao seu bel prazer e nunca se dedicou a dar amor. Não digo amor, mas nem mesmo um pouquinho de carinho você dedicou a mim.
– Para com isso, Margie. Nós passamos todo esse tempo juntas. Estávamos no mesmo lugar. Até transamos.
– Transar e fazer sexo dá para fazer com qualquer um. O que eu esperava de você era que fizesse amor comigo. Fizesse amor do mesmo jeito que fez quando estávamos seguindo os lobos.
– Não sei qual a diferença. – A gente fez amor sim.
– Não foi amor, sua idiota. Foi apenas sexo.
– Amor, sexo. Que diferença isso faz? Lógico que o sexo com você é especial. Mas no final, dá tudo no mesmo.
– É verdade que você pensa assim? Não acredito que você seja tão insensível assim.
Milena sabia que estava falando aquilo da boca para fora. Transar com Margie era algo que a realizava e a diferença a que ela se referia era entre as transas de antes e as que tinham na Enseada. Então, sem encontrar uma explicação plausível, fez o que as pessoas costumam fazer quando não têm mais recursos para sustentar uma discussão. Virou as costas para Margie, se dirigiu ao Tornado e falou:
– Para mim já deu. Vou voltar para a Enseada. Você pode ficar com a Ventania, apenas cuide para que ela não fuja de você e te deixe a pé. Tchau.
O silêncio dominou o local enquanto Milena se preparava para voltar. Ela fez questão de deixar a maior parte dos alimentos com Margie, enquanto levava apenas o necessário para sobreviver durante os dois dias que levaria em sua viagem de volta. Quando ficou pronta, sem dizer uma palavra, montou Tornado e se afastou a passo lento.
Com os olhos presos nela e o coração a mil, Margie olhava a loira se afastar até que, sem resistir, gritou:
– Eu te amo, Milena. O problema é a Enseada. Quando você está lá, não age por conta própria.
Milena parou de repente e, sem se voltar, perguntou:
– O que foi que você disse?
– Eu disse que o problema é a Enseada.
Milena fez com que Tornado se virasse e o instigou para que ele galopasse em direção à Margie que, ao ver isso, ficou calada. Quando chegou perto, a loira pulou do cavalo ainda em movimento, parou na frente dela e falou:
– Não isso! Não sobre a Enseada. Perguntei o que você disse antes.
Margie suspirou fundo e começou a falar:
– Eu disse que…
Sua voz falhou quando ela viu os olhos azuis de Milena brilhando da mesma forma que já tinha brilhado um dia. O efeito disso foi tão forte que ela não resistiu e baixou a cabeça sem conseguir concluir a frase. Aquele olhar lhe deixou com a certeza de que estava certa. Milena não a desprezara, apenas estava agindo sob a influência da magia da Enseada que controlava as emoções de todos.
De todos, menos de Margie que, após vencer Sétan, ficou livre da influência dessa magia. Voltou a levantar a cabeça e viu Milena fazendo gestos com a mão, como se a incentivasse a terminar a frase inacabada. A ruivinha respirou fundo e abriu a boca para falar, mas não disse o que Milena esperava. Em vez disso, estendeu as duas mãos e as cruzou na nuca da outra, puxando o corpo dela para si enquanto dizia:
– Sua idiota. Você é…
A frase não terminou. Não tinha como falar mais nada porque suas bocas estavam grudadas em um beijo apaixonado. As pernas trêmulas de Margie não resistiram ao seu peso e seu corpo foi deslizando para o chão, arrastando Milena junto com ela. Caíram no chão, abraçadas sobre a areia. Foi Milena que interrompeu o beijo e, sem aliviar a pressão que fazia para manter Margie deitada, falou:
– A gente não tem compromisso nenhum. Que tal passarmos o dia aqui? Amanhã nós vamos ver esse lindo lago.
– É bem do jeito que eu falei. Você é uma idiota. – Falou Margie sorrindo.
– Por que você está brava agora?
– Porque você tinha que parar de me beijar só para falar o óbvio.
Sob os galhos ressequidos de uma árvore que recentemente tinha sido atingida por um raio, ao lado de um mar cujas ondas chegavam até onde elas estavam, as duas se amaram como se a vida delas dependesse disso.