Eu me lembro exatamente da primeira vez que senti ciúme do Gustavo. Já estávamos quase no meio do ano letivo, e tudo seguia normalmente comum entre nós. Naquele dia específico, algo parecia diferente. Eu acordei, como sempre, com o som do despertador. O quarto ainda estava meio escuro, mas percebi que a cama do Gustavo já estava vazia. Ele tinha acordado antes de mim, algo raro.
Levantei, meio preguiçoso, e me arrastei até o banheiro. Quando cheguei à cozinha, lá estava ele. Gustavo estava sentado à mesa, com uma tigela de cereal à frente, a luz da manhã iluminando seu rosto despreocupado. Ele olhou para mim e sorriu.
- Bom dia, preguiçoso - ele disse, com a voz rouca de quem já tinha falado bastante pela manhã.
- Bom dia... - respondi, ainda esfregando os olhos.
Sentei-me ao lado dele, e minha mãe colocou um prato de pão com manteiga na minha frente. Gustavo parecia mais animado que o normal, como se algo tivesse mudado. Ele mexeu nos meus cabelos bagunçados enquanto eu mordia meu pão.
- Você parece que não dormiu nada, Léo. - Ele riu, me olhando com aquele ar protetor. - Vai dar tudo certo hoje, ok?
- Tudo certo com o quê? - perguntei, confuso.
Ele deu de ombros.
- Não sei. Só senti que precisava dizer isso.
Aquele gesto parecia tão carinhoso que meu coração ficou mais leve. Gustavo tinha esse poder, de transformar qualquer momento em algo especial.
Depois do café, fomos juntos para a escola. No caminho, conversamos sobre coisas aleatórias - ele me contou sobre um jogo novo que queria comprar, e eu apenas ouvi, apreciando o momento. Era bom estar com ele assim, sem preocupações.
Quando chegamos à escola, a multidão de alunos parecia ainda maior do que o normal. E lá, perto do portão, estava a Lara. Ela sorriu ao me ver e veio em minha direção com passos decididos.
- Oi, Léo! - disse ela, sua voz levemente alta, como se quisesse garantir que eu ouviria. - Eu estava esperando você.
Lara era sempre muito direta, algo que eu achava fascinante e, ao mesmo tempo, um pouco intimidador. Ela tinha o hábito de repetir algumas palavras, especialmente quando estava empolgada, e suas frases eram sempre muito sinceras.
- Oi, Lara - respondi, enquanto Gustavo dava um passo para o lado, observando a interação.
- Você já estudou para a prova de matemática? - perguntou ela, inclinando a cabeça levemente para o lado. - Prova de matemática, sabe? Eu revisei ontem, mas esqueci algumas coisas. Minha mãe disse que eu deveria pedir ajuda. Ela disse que eu deveria pedir ajuda.
- Ah, claro, posso te ajudar depois - falei, sorrindo.
Ela parecia satisfeita com minha resposta e começou a falar sobre o que tinha lido no dia anterior. Gustavo apenas observava, e eu podia sentir seus olhos em mim. Ele parecia diferente, mas não consegui decifrar o porquê.
O dia seguiu normalmente, ou pelo menos eu achava que sim. Até que, no intervalo, enquanto caminhava pelo pátio, meus olhos pousaram em Gustavo. Ele estava encostado em uma parede, conversando com uma menina que eu nunca tinha visto antes. Ela era bonita, com cabelos longos e um sorriso radiante.
E então, aconteceu. Ela se inclinou e deu um selinho nele.
Foi como se o mundo tivesse parado. Meu coração disparou, mas não de forma agradável. Era uma sensação amarga, sufocante. Uma onda de emoções que eu não conseguia identificar tomou conta de mim.
Tentei desviar o olhar, mas era impossível. Senti meu rosto esquentar, meu estômago revirar. Era como se algo precioso tivesse sido roubado de mim, embora eu nem soubesse exatamente o que.
Não consegui mais me concentrar no restante do intervalo. Quando as aulas recomeçaram, as palavras dos professores soavam distantes, como se eu estivesse preso em um sonho ruim.
Por que aquilo tinha me incomodado tanto? Por que eu sentia como se algo dentro de mim tivesse quebrado?
Naquele dia, aprendi que o ciúme podia ser avassalador. E, embora eu não entendesse completamente o que estava sentindo, sabia que era algo que mudaria tudo entre nós.
Se eu já achava que o dia não podia piorar, estava redondamente enganado. Minha cabeça estava tão confusa com o que tinha acontecido no intervalo que mal conseguia prestar atenção nas aulas. As palavras dos professores entravam por um ouvido e saíam pelo outro. Tudo o que eu conseguia pensar era no Gustavo e naquela garota. O selinho. A sensação amarga ainda me corroía por dentro.
Então, veio a última aula do dia: português. Normalmente, eu até gostava das aulas de redação, mas, naquele momento, minha mente estava em qualquer lugar, menos na sala.
- Muito bem, turma - começou a professora Regina, arrumando os óculos no rosto. - Hoje vamos falar sobre trabalho em dupla. Vamos começar uma atividade para desenvolvermos textos narrativos. Cada dupla terá que criar uma história de no mínimo cinco páginas, com começo, meio e fim, além de uma revisão gramatical.
"Trabalho em dupla" era uma expressão que sempre me causava um frio na barriga. Eu sabia que isso significava me juntar a alguém, e, como eu não tinha muitos amigos na sala, a expectativa de escolher uma dupla era quase um pesadelo.
- Antes que vocês comecem a escolher, eu já formei as duplas. Assim economizamos tempo - anunciou ela, sem dar chance a qualquer protesto.
Senti meu estômago revirar. Já podia imaginar a tragédia que seria.
- Lara e Bianca... João e Felipe... Gustavo e Isabela... - A cada nome, meu nervosismo aumentava. Então, veio o golpe final: - Léo e Miguel.
Minha respiração travou. Miguel? Não, não podia ser. Ele era exatamente o garoto que tinha feito da minha vida um inferno no começo do ano. Aquele que implicava comigo por qualquer coisa, como o jeito que eu segurava meus livros ou o fato de sempre ficar quieto.
Levantei a mão no mesmo instante.
- Professora, será que eu posso trocar de dupla?
A sala inteira se virou para me encarar, mas não me importei. Só queria fugir dessa situação.
- Não, Léo - respondeu a professora, sem sequer levantar os olhos do caderno onde fazia anotações. - As duplas foram formadas para que vocês aprendam a trabalhar com pessoas diferentes. Vai ser bom para você e para o Miguel.
Ouvi um suspiro pesado vindo de duas fileiras atrás de mim. Era ele, Miguel, que parecia tão insatisfeito quanto eu.
- Ótimo - resmungou ele, cruzando os braços e jogando o corpo para trás na cadeira.
Eu me afundei na cadeira, sentindo o olhar de todos pesando sobre mim. Lara, que estava sentada na fileira ao lado, inclinou-se e sussurrou:
- Parece que você não deu sorte. Não deu sorte.
- É, parece que não - murmurei de volta, tentando esconder minha frustração.
Quando a aula terminou, eu guardei minhas coisas lentamente, tentando evitar qualquer interação com Miguel. Mas ele não me deu escolha. Assim que todos começaram a sair da sala, ele parou ao meu lado.
- Olha só, Léo - começou ele, com o tom indiferente de quem estava fazendo um grande sacrifício. - Vamos resolver logo isso, tá? Fazemos o trabalho rápido, cada um segue a sua vida e nunca mais precisamos falar um com o outro.
- Por mim, tudo bem - respondi, seco.
- Certo. Então a gente faz lá em casa amanhã, depois da aula. Pode ser?
A proposta me pegou de surpresa. Não que eu estivesse animado para convidá-lo para a minha casa, mas o contrário parecia ainda mais estranho.
- Na sua casa? - perguntei, levantando uma sobrancelha.
- É. Minha mãe vai estar trabalhando, então não tem ninguém para atrapalhar. Fazemos isso rápido e acabou.
Hesitei por um momento. Estar na casa dele não era exatamente o que eu queria, mas se significava terminar o trabalho sem prolongar o contato, talvez fosse o melhor.
- Tá bom. Pode ser - respondi, finalmente.
Ele deu de ombros e saiu sem dizer mais nada, como se aquele pequeno esforço para falar comigo já tivesse sido mais do que suficiente.
Enquanto caminhava para casa, minha cabeça estava ainda mais cheia. Gustavo, Miguel, o trabalho... Nada parecia estar no lugar. O dia seguinte prometia ser longo, mas esse também estava sendo.
Eu nunca fui do tipo que gosta de voltar sozinho para casa, mas naquele dia... bom, naquele dia eu precisava de um tempo só para mim. Ainda estava remoendo tudo o que tinha acontecido: o Gustavo, a cena no intervalo, e agora o trabalho de português com o Miguel. Era coisa demais para processar de uma vez só. Então, assim que o sinal da última aula tocou, nem esperei o Gustavo.
Lara se despediu com seu habitual entusiasmo repetitivo:
- Tchau, Léo! Amanhã você vai me contar o que achou da minha ideia para o trabalho, tá? Vai contar, tá?
- Vou sim, Lara - respondi com um sorriso leve, que ela sempre conseguia arrancar de mim, mesmo nos piores dias.
Segui direto para casa, com os pensamentos a mil. Quando cheguei, notei que estava tudo silencioso. Um silêncio incomum, diferente do barulho usual da televisão ligada ou das conversas que costumavam preencher o ambiente.
Na geladeira, encontrei um bilhete da minha mãe:
"Fui ao mercado comprar algumas coisas. Já volto. Beijos, mamãe."
Suspirei, largando minha mochila na cadeira da cozinha. Meu padrasto devia estar no trabalho, e pelo visto, ninguém mais estava por ali... ou pelo menos era o que eu pensava.
Quando subi as escadas, tudo estava quieto, exceto por uma música baixa que vinha do quarto do Eduardo. Bati de leve na porta antes de ouvir sua voz dizendo:
- Entra.
Abri devagar e encontrei meu irmão mais velho em frente ao espelho, ajeitando o cabelo com uma expressão pensativa. Ele estava sem camisa, como sempre ficava em casa, e tinha aquele ar despreocupado de quem estava apenas aproveitando o silêncio.
- Você chegou cedo hoje - comentou ele, sem tirar os olhos do reflexo no espelho.
- É... decidi vir direto pra casa.
Ele se virou, cruzando os braços, e me olhou com aquele olhar analítico que só ele tinha.
- Tá com uma cara meio estranha. Aconteceu alguma coisa?
- Não, nada - respondi rápido demais, o que obviamente só aumentou a suspeita dele.
Eduardo estreitou os olhos, aproximando-se de mim.
- Nada? Então por que essa cara?
- Já falei, nada... só me sinto meio... estranho, só isso.
Ele ergueu uma sobrancelha, como quem não acredita nem por um segundo.
- Estranho como?
Eu dei de ombros, desviando o olhar.
- Não sei explicar. Só... algumas coisas.
Ele ficou quieto por um momento, como se estivesse tentando decifrar o que se passava pela minha cabeça. Depois voltou para o espelho e continuou ajeitando o cabelo.
- Sabe que pode falar comigo, né? Seja lá o que for - disse ele, casual, mas com um tom que deixava claro que estava genuinamente aberto a ouvir.
Assenti, ainda sem saber exatamente como colocar em palavras o que eu estava sentindo. Eduardo voltou a me olhar pelo reflexo no espelho.
- E o Gustavo? Por que não voltaram juntos?
Suspirei, sentando-me na beira da cama dele.
- Decidi voltar sozinho hoje.
- Sozinho? - Ele se virou completamente para me encarar. - Isso é bem diferente de vocês. Tá tudo bem entre vocês?
- Tá, claro que tá. Só... precisava de um tempo pra mim, sabe?
Eduardo continuou me observando com aquele olhar desconfiado, como se estivesse esperando que eu dissesse algo mais. Mas quando viu que eu não ia falar, soltou um suspiro e se sentou ao meu lado na cama.
- Léo... - ele começou, com um tom mais sério. - Eu sei que você tá escondendo alguma coisa.
- Não tô - retruquei, um pouco mais defensivo do que pretendia.
Ele riu de leve, balançando a cabeça.
- Tá bom, se você diz. Mas, sério, se precisar falar, é só me procurar.
Assenti, murmurando um "tá bom". Eduardo ficou em silêncio por um momento, olhando para o chão como se estivesse pensando em algo importante.
- Posso te perguntar uma coisa? - disse ele, finalmente.
- Claro, o que foi?
Ele hesitou, coçando a nuca.
- É sobre você e o Gustavo...
Fiquei tenso imediatamente.
- O que tem?
- Nada, só... vocês são bem próximos, né? Tipo, muito próximos.
- Uhum. E daí?
Eduardo abriu a boca para continuar, mas parecia que algo o impedia de ir adiante. Ele me olhou como se estivesse procurando alguma resposta em mim antes mesmo de fazer a pergunta.
- Não, deixa pra lá. Esquece - disse ele, balançando a cabeça e se levantando de novo.
- Fala logo, Eduardo. O que foi?
Ele deu uma risada sem graça, desviando o olhar.
- Nada, cara. Só tava pensando besteira. Não tem nada a ver.
Por algum motivo, isso me deixou inquieto. Era raro ver Eduardo tão hesitante, e aquilo só aumentava a sensação de que ele sabia mais do que deixava transparecer. Hoje eu ouso dizer que meu irmão mais velho foi a primeira pessoa a perceber que tinha algo diferente no que eu sentia pelo Gustavo, mas naquela época eu ainda não entendia.
Naquela época, eu nunca tinha sentido atração por nenhuma garota. Para mim, era normal. Eu achava que, em algum momento, quando chegasse a hora certa, uma garota especial apareceria, e então eu finalmente entenderia o que era amar de verdade. Era isso que todos diziam, afinal. Mas hoje, aos 28 anos, enquanto escrevo essa história, percebo que talvez meus sentimentos já estivessem despertando naquela época - só não da forma que eu esperava. Eles não eram por garotas e, pior ainda, eram por alguém que eu jamais deveria sentir.
Eu não sabia como lidar com aquilo. Talvez por isso eu tenha ignorado os sinais por tanto tempo. Mas agora, olhando para trás, percebo que estava tudo ali, mesmo que eu não entendesse. E o Miguel... Ele foi um passo importante na minha vida. Talvez o primeiro de muitos para que eu começasse a me entender, a me descobrir. Mas essa parte da história... ainda vamos chegar nela.
Naquele dia, depois de sair do quarto do Eduardo, fui direto para o meu. Coloquei minha mochila no canto e fui para o banheiro tomar um banho. A água quente parecia aliviar um pouco o peso nos meus ombros, mas minha mente não parava. Tudo girava em torno daquela cena - Gustavo e a garota no intervalo. Aquele selinho.
Depois do banho, me joguei na cama, tentando organizar os pensamentos. Não demorou muito até ouvir passos no corredor e a porta se abrir. Era Gustavo.
- Ei, tá tudo bem? - ele perguntou, com a voz baixa, quase cautelosa. - Por que você não me esperou pra ir embora?
Fiquei em silêncio por alguns segundos, olhando para o teto. Ele insistiu:
- Léo? Tem alguma coisa errada?
- Não. Só quero ficar sozinho hoje - respondi, com a voz mais firme do que pretendia.
- Sério? O que aconteceu? - ele continuou, sentando-se na beirada da minha cama.
Virei para o lado, de costas para ele.
- Nada, Gustavo. Eu só... só quero que hoje a gente fique quieto, tá? Não quero falar com ninguém.
Ele ficou em silêncio por alguns segundos. Depois, se levantou devagar.
- Tá bom... Se você precisar de alguma coisa, tô aqui.
Ouvi os passos dele se afastando, e a porta fechando atrás dele. Foi só quando fiquei completamente sozinho que as lágrimas começaram a cair. Tentei me segurar, mas não consegui. Chorei baixinho, enterrando o rosto no travesseiro.
Naquele dia, foi uma das poucas vezes em que chorei e Gustavo não estava ali para me abraçar. E o que eu mais precisava era exatamente disso - do abraço dele. Mas não podia pedir. Estava magoado demais com o que tinha visto mais cedo, com aquele beijo, por mais inocente que fosse.
Naquela época, eu achava que era normal sentir ciúmes. Afinal, éramos irmãos, e irmãos sentem ciúmes um do outro, certo? Só que agora, escrevendo essa história, percebo que o ciúme só existe quando existe amor. E talvez... talvez naquele momento eu já soubesse disso, mesmo que não quisesse admitir.