CAPÍTULO III
*** GUSTAVO FORTUNA ***
Seminu, trêmulo, com os olhos vidrados, o homem me encara com uma expressão chocada e, em uma fração de segundo, percebo que ele vai cair. É instintivo. Colo meu corpo ao seu, passando um dos meus braços ao seu redor, segurando-o, mantendo-o de pé, quando, claramente, ele estava prestes a ceder, e o estremecimento que atravessa seu corpo é tão intenso quando aquele que atravessa o meu, mas nem mesmo isso o tira do seu estado de torpor. Meus olhos encontram os seus e eles são lindos.
Definitivamente, os olhos não são a primeira coisa que reparo em uma pessoa, principalmente, uma que esmurra minha porta vestindo apenas short curto de pijama de seda vermelha. O problema é que ele não me deu tempo o suficiente para apreciar a vista como eu gostaria, então eu aceito o que me é dado.
Iris verde escuras com um círculo quase amarelo ao redor, lindos, e não consigo evitar a dúvida sobre eles escurecerem ou não quando ele goza. Porra, isso é demais até para mim! O título de cafajeste me é bem apropriado, mas eu não costumo sair por aí, imaginando os olhos de caras estranhos ao gozar. Passo a língua sobre os lábios, e o olhar do homem continua vidrado, ele não o desvia de mim nem mesmo por um instante, a sensação que tenho, é a de que uma bolha se formou ao nosso redor.
Inspiro com força, meu nariz é inundado pelo cheiro de fruta, flores e capim, e, por alguma razão, acho que isso é apropriado ao homem em meus braços. Mesmo não fazendo ideia de quem els é, a selvageria e o atrevimento estão impressos em seus olhos, tanto quanto o amarelado que circula o verde.
Seus lábios se entreabrem e eu sou atingido pelo seu hálito morno. Passo a língua pelos meus próprios lábios, antes de prender o inferior entre os dentes. As sobrancelhas franzidas convidam meus dedos a passear pela ruga entre elas, praticamente ordenam que eu largue no chão a caneca de café que seguro, e obedeça, mas eu não posso fazer isso, sei que não posso. Segundos, minutos, não sei quantos se passam até que ele estoure a bolha ao nosso redor com um pigarro seco, um pedido para que o solte.
Eu o faço, e o homem loiro, rapidamente, dá três passos para trás. Afastando-se de mim como se meu toque o tivesse queimado. É a minha vez de franzir o cenho e, finalmente, podendo observá-lo inteiro, tenho uma imensa dificuldade em manter meus olhos presos ao seu rosto, já que suas roupas pequenas e transparentes deixam muito pouco para a imaginação.
Espero. No entanto, depois de quase colocar minha porta abaixo, depois de quase cair, depois de me prender em uma bolha de observação silenciosa mútua, ele permanece sem dizer nada por muito mais tempo do que seria adequado em uma situação normal, ainda mais nessa.
Seus cabelos loiros chegam pelos ombros, amo homem de cabelo grande, sua pele clara, não são um convite ao desejo, são uma intimação, e eu começo a sentir a resposta entre as minhas pernas. Se controla, Gustavo! Você não é a porra de um adolescente! É perfeitamente capaz de lidar com um cara... bonito... Pro inferno com bonito! Deslumbrante nem começa a descrever...
Mordo o lábio, analisando a situação, mas não consigo chegar a nenhuma conclusão sobre o porquê de ter tido minha porta esmurrada pelo homem que, apesar de ter precisado ser amparada, tem uma postura óbvia de enfrentamento, quando não são nem mesmo oito da manhã, e ele ainda nem tirou do corpo gostoso as roupas com que dormiu.
— Pois não? -pergunto, ele fecha a boca, engole, e, depois, volta a abri-la, apenas para continuar não dizendo nada. Inclino a cabeça para o lado e tomo um gole do café esquecido na xícara, desde que abri a porta. Gelado, mas não me importo, preciso de alguma coisa para me distrair. Alguns vizinhos curiosos encaram a cena, assim como eu. Espero. E espero. E continuo esperando, uma eternidade inteira se passa sem que o homem faça qualquer movimento, elevando minha ansiedade a níveis estratosféricos, e me deixando sem opções.
— Você pretendia me dizer alguma coisa, ou costuma colocar portas de apartamentos abaixo por diversão? -pergunto divertido, estreitando meus olhos, agoniado pela expectativa de uma resposta. Precisando, sem ter ideia do porquê, ouvir sua voz. Ele gagueja e engole ar algumas vezes, e, finalmente, minha necessidade descabida é atendida.
— Eu... -Uma sílaba. Uma única sílaba e eu sei quem ele é. Esse timbre macio me atormenta todas as noites há meses, eu não precisaria de muito para reconhecê-lo, e consciente disso, refaço minha análise dele, deslizo meus olhos pelo seu corpo, pelas coxas grossas, pelo seu peito definido, pelo queixo pequeno e pelos olhos esverdeados, e, de repente, é meu o olhar vidrado, porque imagens dele preenchem minha visão.
Nu, retorcendo-se embaixo de mim na cama enquanto geme em meu ouvido. Com as roupas frouxas pelo corpo e as pernas presas ao redor da minha cintura enquanto o fodo com força em uma parede. Com o olhar perdido e a boca aberta enquanto minha língua faz uma verdadeira festa entre sua bunda, são muitas, muitas imagens. Tudo aquilo que eu imaginei diariamente nos últimos quase sessenta dias, enquanto o ouvia completamente entregue ao prazer, que eu fingia ser eu quem lhe dava, inunda minha mente, tomando cada curva de canto escuro da minha consciência. O quanto o vizinho da minha imaginação é parecido com a realidade chega a ser impressionante.
— Você é o vizinho doAfirmo, e minha voz sai muito mais baixa e rouca do que seria apropriado, suas sobrancelhas se erguem, e, ainda assim, nenhum som sai de sua boca. Seus olhos se fixam nos meus, sua respiração ofega, ele entreabre os lábios, seu corpo treme de um jeito muito diferente do que tremia quando eu abri a porta.
O ar ao nosso redor muda e, agora, não sinto mais como se estivéssemos dentro de uma bolha, separados do restante do mundo, sinto como, se, de alguma forma bizarra, todo o resto tivesse deixado de existir e houvesse apenas nós dois. A vontade de me aproximar dele e reivindicar aquilo que tenho desejado e imaginado há tanto tempo é quase sufocante e, em seus olhos, vejo um reconhecimento incompreensível, porém, delicioso.
Dou um passo em sua direção e ele dá um para trás, estreito meus olhos, para ele, e seus dentes maltratam o pobre lábio inferior, deixando-me ainda mais louco para cuidar dele, mais um passo para frente, mais um passo para trás. Em alguma parte minúscula e sensata da minha mente, a lembrança de que eu não o conheço, de que ele não é meu, insiste em surgir, mas sua voz é baixa demais, a lembrança é pequena demais, insignificante demais, para que eu preste atenção.
Um som alto e estridente soa, despertando o vizinho que preenche minhas madrugadas com seus gemidos e desejos do transe em que nos encontrávamos, e obrigando-me a sair dele também. A mudança em seu olhar é imediata, o reconhecimento que eu via se foi, e, agora, tudo o que existe nele é a raiva inicial.
Sua expressão é grave e levemente confusa, tenho certeza de que, assim como eu, ele não entende completamente o que aconteceu aqui. Quero perguntar tantas coisas a ele, o motivo da sua raiva, por que quase derrubou minha porta, mas, principalmente, de onde ele me conhece? Por que eu sei que nunca o vi, antes, eu jamais poderia esquecê-lo, esses olhos seriam lembranças muito bem guardadas, independente das circunstâncias.
No entanto, antes que eu tenha a chance de dizer qualquer coisa, seu olhar possesso me encara uma vez mais, ele estica os braços ao lado do corpo, fecha as mãos em punho, da sua garganta sai um som, ao mesmo tempo, gutural e agudo e, ao encarar a cena, nenhuma palavra que não chilique me vem à cabeça. Então, achando que não havia me surpreendido o suficiente, o cara me dá as costas, entra no apartamento ao lado do meu, e bate a porta com violência. Mas que diabos?!
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— Você acha que ele pode ser um problema? -Rodrigo pergunta enquanto giro uma caneta displicentemente na ponta dos dedos. Sentado em meu escritório, contei a ele sobre o episódio dessa manhã, e, juntos, fomos capazes de concluir que há apenas um motivo para o homem ter me olhado e agido daquela maneira, o início das compras dos imóveis.
Não gostei de descobrir que, de alguma forma, eu o estou prejudicando, mas, eu nunca deixaria que meu pau comandasse meus negócios. Então, a não ser que algo mude, o batente da sua porta é um limite que eu não vou ultrapassar.
Ainda no apartamento, passei um tempo considerável tentando, sozinho, descobrir do que tinha se tratado tudo aquilo. Cogitei, até mesmo, bater na porta dele e pedir explicações, mas considerando a forma como fui deixado plantado em minha própria porta sem que o homem me desse nem mesmo a sombra de uma satisfação por suas atitudes, ele, provavelmente, nem me atenderia. E, diferente dele, eu não podia ensaiar colocar a porta do seu apartamento abaixo.
Com algumas ligações, descobrimos que Eric Viana subloca o apartamento 304, o qual, na verdade, é o único de todo o andar que ainda não foi comprado pela GAF. O proprietário tem resistido, e, depois de olhar naqueles olhos furiosos, determinados, e que pareciam, ao mesmo tempo, querer me devorar, e ver minha cabeça perfurada por uma estaca, não preciso ser nenhum gênio para saber o porquê. Ele não quer despejá-lo.
— Não... Nada vai ser um problema pra esse empreendimento, Rodrigo. Nada pode ser um problema pra esse empreendimento. Se você está preocupado que eu brinque no parquinho onde não devo, pode ficar tranquilo... -Levanto a cabeça, encontrando uma expressão de deboche em seu rosto.
— Sério?! Depois de tudo o que você me contou? Eu só conseguiria ficar tranquilo se não te conhecesse, Gustavo! Porque, esse, definitivamente é o tipo de situação de merda em que você se meteria, só pelo desafio... homens que te odeiam são o seu tipo favorito. -Sorrio, porque, como sempre, meu irmão não está errado.
Levanto minhas mãos em um sinal de rendição, reconhecendo que ele tem razão. Mas, nesse caso, especificamente, os riscos são altos demais, até para mim, que adoro riscos.
— Você não está errado, mas eu gosto de me arriscar, Rodrigo, não sou louco. Jamais colocaria um cu na frente dos negócios, não importa o quão gostoso o dono dele saiba gemer...
— Eu juro por Deus que eu te amo, porque você é meu irmão! Mas às vezes você é um babaca de marca maior! O cara não se resume aos seus órgãos sexuais, Gustavo! Porra, nossa mãe criou a gente melhor do que isso! -acusa e resmunga, aumentando meu sorriso.
— Ela conseguiu um de dois, Rodrigo. Isso é uma taxa de sucesso de cinquenta porcento, afinal, você é a cadela mais bem treinada que eu já vi na vida quando se trata de mulher. E como vai minha cunhada, aliás? -Rodrigo estreita os olhos para mim, mas, de repente, um sorriso se espalha pelo seu rosto antes de ele me responder.
— Vai chegar o dia, Gustavo, em que um cara vai te ter de joelhos, e quando esse dia chegar, eu não vou te dizer que te avisei, eu vou te abraçar, te dar os parabéns, e te dizer que, finalmente, você descobriu o significado da palavra felicidade. E minha belíssima esposa vai bem, obrigado. Querendo, inclusive, saber quando o tio Guga vai levar as gêmeas pra uma visita.
Dispenso sua praga com a mão e estalo a língua, em uma declaração clara de descrença.
— Esse dia não vai chegar, meu irmão. Cinquenta por cento é tudo o que nossa mãe terá para se orgulhar, e quanto as gêmeas, vocês sabem que só precisam me dizer o dia e a hora!
— Até amanhã eu te dou as duas coisas, Camilla e eu estamos mesmo precisando de um tempo... -Reviro os olhos, fingindo cansaço, mas é só isso mesmo, fingimento. Meu irmão conheceu minha cunhada há quase dez anos, ainda na faculdade, e eles dizem que foi amor à primeira vista. Desde então, nunca mais se separou dela. Namoraram, noivaram, casaram, e trouxeram ao mundo as duas coisinhas mais preciosas que existem, Alice e Alicia, as gêmeas de sete anos de idade que eu digo, sem nenhuma vergonha, que me fazem de gato e sapato.
Eu admiro o relacionamento do meu irmão, não entendo, e nem quero um para mim, mas admiro. Essa coisa de escolher a mesma pessoa todos os dias quando você pode escolher uma para cada hora do dia, simplesmente não faz sentido para mim, por isso, a sugestão de Rodrigo nem me incomoda. Eu não tenho um trauma no passado ou algum tipo de pré-disposição genética que me impede de ter sentimentos, não, pelo contrário, eu os tenho, e muito intensos.
Amei e admirei meu pai durante toda a sua vida e, ainda hoje, quase seis anos depois de perdê-lo, meus sentimentos continuam tão intensos quanto quando eu ainda podia abraçá-lo. Amo minha mãe com todo o meu coração e faço de tudo por ela, o mesmo vale para o meu irmão, para as minhas sobrinhas, e, até mesmo para minha cunhada, mas escolher alguém a quem me ligar para o resto da vida? Não, isso não é algo que eu faria.
É a vez de Rodrigo me dispensar com um aceno.
— Vamos falar de trabalho, porque falar de relacionamento com você é um desperdício do meu tempo, e ele é precioso... Você sabe que isso é impossível, certo? Eu falo sobre não ter problemas ao longo do empreendimento, esse projeto tem problema como sobrenome, Gustavo. Serão muitos, e as chances de ele dar errado e nunca chegar a ser realmente concluído são maiores do que as de dar certo. 65 a 35, você conhece os riscos. E devia se preparar para eles...
Balanço a cabeça e franzo o nariz. Eu conheço os números, mas nesse sentido, eles não me interessam. Estalo a língua.
— Você tá pregando pro pastor da igreja, Rodrigo. Eu conheço os números, fui eu quem fez as contas, afinal. Mas isso não me preocupa, sempre lidei com os pepinos, não vai ser agora que vou deixar de lidar. Orçamento, dificuldades estruturais, tempo de investimento, aumento do valor de mercado, diminuição do tempo de licença de construção, essas coisas são de praxe...
— Sim, mas você sabe... Esse cara...
Finjo estar dormindo e roncando diante da nova citação aovizinhao do 304 e Rodrigo revira os olhos para mim.
— Quantos anos você tem? -pergunta, e eu finjo despertar, repentinamente, então, olhando para ele, esfregando as mãos nas pálpebras, respondo.
— Dormi? Desculpa! Mas é que você tá tão repetitivo... -Rodrigo bufa: ͞ Eu já disse, irmão. Problemas são naturais em qualquer empreendimento, é de praxe, se não tiver, alguma coisa tá errada... -Revirando os olhos e movendo a cabeça de um lado para o outro, em negação, volta a falar.
— O que não é de praxe é um empreendimento desse porte acabar estampando os jornais, não como um lançamento revolucionário, como você quer vendê-lo, mas como expulsão de moradores locais, Gustavo. Já imaginou se esse cara decide começar a fazer barulho? Apontar seu projeto como elitização da região, enriquecimento da área e um milhão de outros adjetivos cabíveis? Alguém, disposto colocar sua porta abaixo, é potencialmente capaz de fazer um estrago, e você não devia ser tão leviano assim sobre isso...
Suas palavras trazem, imediatamente, a imagem daqueles olhos verde amarelados à minha mente, e eu não consigo deixar de sorrir. Eu não precisei nem mesmo saber seu nome para ter certeza de que aquele homen é capaz não apenas de criar problemas, mas de organizá-los como se ele fosse um maestro, e os problemas, sua orquestra. Sorrio, porque, puta que pariu! Definitivamente, esse é o meu tipo de homem... puta que me pariu!
É o meu tipo de homem elevado à décima potência! Mordo o lábio, tendo a mente voltando a ser tomada pelas imagens que surgiram quando a tive em meus braços essa manhã. Tão gostoso! Porra, o vizinho encrenqueiro não poderia ser o senhor dos gatos que com certeza tem no prédio? Porque todo prédio tem um.
Com o corpo jogado cadeira, os cotovelos apoiados em seus braços, e as mãos cruzadas sob meu queixo, balanço a cabeça lentamente. Publicidade negativa. De todos os riscos, esse é o único que realmente me preocuparia, porque é o único que eu não poderia controlar. No mundo atual, tudo que é necessário para se começar um incêndio publicitário, é uma centelha, e um morador despejado e insatisfeito com isso, seria como riscar um fósforo e jogá-lo sobre gasolina.
— Gustavo! -Rodrigo me chama com um tom de alerta e eu esfrego minha nunca e faço uma careta com os lábios.
— Eu sei... eu sei... vou manter o pau nas calças, Rodrigo. Juro que vou, e, além disso, ele é comprometido, eu já te disse...
— Isso nunca te impediu antes...
— Ué, eu não sou comprometido! -defendo-me e Rodrigo apenas me lança um olhar de reprovação.
— Gustavo, isso é muito sério, eu preciso te lembrar do que estamos arriscando aqui?
— Vai ficar tudo bem. Em último caso, podemos pagá-lo pra ficar de boca fechada, não é o ideal, mas se for necessário...
Rodrigo bufa.
— Claro! Joga dinheiro em cima e pronto! Problema resolvido! - diz, entre bufos, assobios e acenos desdenhosos. Meu irmão cruza as pernas, apoiando um tornozelo sobre o joelho, e me encara, com os braços soltos ao lado do corpo. ͞ Não gostar nem começa a descrever como os investidores vão se sentir com isso. Gustavo? Já imaginou se essa coisa deixa de ser uma reclamação única e passa a coletiva? O que você vai fazer? Distribuir dinheiro? Virar o papai noel? E estamos falando de pessoas que nem sequer são donas dos imóveis... Isso poderia cancelar o empreendimento antes mesmo que ele começasse.
— Seu otimismo é impressionante... -resmungo.
— Não é falta de otimismo, meu irmão. É sensatez de sobra, algo que te falta. Você, por acaso, considerou essa possibilidade?
— De que todos os inquilinos dos prédios se organizassem em um motim? Claro que não! Até porquê, isso é pouco provável, não é como se a gente estivesse expulsando moradores pobres de algum canto escuso, de onde, se saírem, eles não terão outras opções de moradia. Estamos falando da Tijuca, Rodrigo. Classe média baixa, no mínimo... Quem mora naqueles prédios pode, facilmente, conseguir outro teto pra por sobre a cabeça, e não vai perder tempo se preocupando com qualquer outra coisa.
— Ou, por serem classe média, vão pensar um pouco, concluir que podem nos atrapalhar, e fazer isso, justamente porque conseguir outro lugar para morar não vai ser exatamente uma preocupação, não estamos lidando com necessidade, irmão, estamos lidando com vontades, e, dependendo de quais sejam, podem ser muito mais perigosas.
— Você está sendo exagerado... -alerto — E você está sendo displicente!...
— Por que você tá tão preocupado com isso, afinal?
— Eu não tô excessivamente preocupado, Gustavo! É você quem está tratando isso com muito menos atenção do que devia, e eu já tenho problemas demais pra ter que lidar com o Miguel em uma diretoria, porra! -diz, e eu finalmente entendo a raiz de toda a sua preocupação.
Rodrigo se importa muito mais em ter que aturar Miguel como diretor de algum setor da empresa do que com os milhões que perderíamos se esse projeto não for concluído, e eu sou obrigado a concordar com isso, eu realmente tinha me esquecido do maldito acordo, aliás, como disse que faria. Mas lembrar dele não muda nada, Rodrigo está exagerando, e ele continua: ͞ Não por algo que poderia ter sido evitado se você levasse a sério!
Expiro profundamente e encaro meu irmão. Os mesmos olhos verdes que encontro no espelho me encaram de volta, já o rosto, além das diferenças naturais por eu me parecer mais com nosso pai, e ele com nossa mãe, concretiza a falta de semelhança por ser liso, livre que qualquer pelo, e, agora, está sério. Seu queixo anguloso se mantém empinado, deixando claro que não pretende voltar atrás.
Bufo, porque serei obrigado a dar o braço a torcer, Rodrigo é uma das poucas pessoas capazes de me fazerem repensar algo ou ceder, e o cretino se aproveita disso, seja em uma decisão de negócios, ou me convencendo a cuidar das gêmeas por um fim de semana para que ele e Camilla tenham um tempo sozinhos de vez em quando, embora, eu seja obrigado a admitir que ficar com as pestinhas não é sacrifício algum.
— Tudo bem, oh, grande sábio! O que você sugere que eu faça? -pergunto, levantando e abaixando as mãos, fingindo adoração.
— Fale com o homem! Mantenha-se por perto...-quase grita, frustrado com a minha teimosia, mas a essa altura da vida, ele deveria saber melhor. Gargalho.
— Irmão, você precisa se decidir, você quer que eu me mantenha longe dele ou que eu fique por perto, afinal?
— O nível de idiotice que você consegue alcançar quando se esforça sempre me surpreende! Eu quero que você mantenha seu pênis longe dele, Gustavo, mas que o CEO da GAF esteja perto, acompanhando um problema em potencial, pronto para solucioná-lo antes mesmo de ele acontecer.
— Rodrigo, você ouviu o que eu te disse? Ele, simplesmente, se recusou a falar comigo. Depois de quase colocar minha porta abaixo, me deus as costas e foi embora sem dizer nenhuma outra palavra além de eu.,
— Não se faça do que você não é, Gustavo! É óbvio que alguma coisa a abalou, o homem não teria esmurrado sua porta até ser atendido por pura diversão, se ele fez, é porque tinha muitas coisas a te dizer, mas alguma coisa aconteceu, nós só não sabemos o que. -diz e eu desvio os olhos dos seus, quer dizer, não é como se eu soubesse o que fez com ele saísse correndo, mas também não é como se eu não tivesse um palpite, eu só não contei para o meu irmão:
Em qualquer outra situação, poderíamos contratar um gerenciador de crises, ou um relações públicas pra lidar com isso, mas ele é seu vizinho, e foi a sua porta que ele quase colocou abaixo, pra ele o empreendimento ganhou um rosto, e é o seu. As coisas se tornaram pessoais...
— Tudo bem, Rodrigo. Você venceu... vou tentar me aproximar do cara e entender sua dor, talvez, nós até façamos tranças nos cabelos um do outro, quem sabe não marcamos uma manicure também? -Ele me dispensa um olhar furioso e resmunga algo que se parece muito com “com essas roupas que você usa, não me admiraria que saíssem em um dia de compras!”, mas não tenho certeza se foi isso mesmo. Então, eu apenas o ignoro e continuo:
͞ Mas eu realmente acho que você tá sendo paranoico, não existe gravidade nessa situação, Rodrigo! É só um vizinho que perdeu o controle sobre si mesmo, mas que, até onde a gente sabe, já se arrependeu, já até esqueceu do que fez. Ele pode, inclusive, não querer me ver nem pintado de ouro, envergonhado pelo próprio comportamento. -digo, aproximando o corpo da mesa diante de mim e colocando sobre ela meus cotovelos.
— Vo.cê.não.sa.be! -sibila.
— Nem você! Então, por que, ao invés de surtarmos sobre o que pode ou não acontecer, a gente não volta ao trabalho pra dar ao projeto que tanto te preocupa, a chance de dar certo?
— Eu desisto, mas, depois, Gustavo! Não venha dizer que eu não avisei! -declara, frustrado, apontando o dedo na minha direção.
— Relaxa, mamãe galinha! Eu vou fazer o que você quer. -Digo, dispensando-o com um aceno, afinal, o que poderia dar tão errado assim? Não é como se eu fosse voltar para o apartamento e descobrir que a vizinha começou um boicote ao empreendimento... né?
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*** ERIC VIANA ***
Ando de um lado para o outro na sala do meu apartamento, tentando fazer com que minhas pernas acompanhem o ritmo ensandecido dos meus sentimentos. Pensando, pensando e pensando, mas sem achar nem mesmo a sombra de qualquer coisa que possa ser considerada uma solução.
“Eric, você precisa respirar, porque, nesse momento, você não está fazendo nenhum sentido!” foram as palavras de Lívia, quando minutos depois de ter batido a porta do meu apartamento, arranquei-a do trabalho, para contar o que aconteceu. Quer dizer, quais as chances? Eu precisava ver alguém para ter certeza de que não estava alucinando, de que tudo aquilo era real e não mais um dos meus sonhos inventados, no qual, de repente, o meu herói, doador generoso de orgasmos, se transformou no vilão, fodedor, escandaloso, e ladrão mesquinho de apartamentos duramente conquistados.
Sentado com minha irmã, à mesa de um pequeno café, perto do escritório em que ela trabalha, respirei fundo antes de contar tudo outra vez e, depois, uma terceira, e uma quarta, só para garantir que estava dizendo tudo, ao final, ela ainda achava que eu não estava fazendo sentido. Tudo bem, não posso realmente julgá-la por isso. Quer dizer, de novo, quais eram as chances?
Desisti das santas, definitivamente, eu estava enganado ao pensar que elas estavam cuidando de mim, não estavam! Estavam debochando, gargalhando, se divertindo um monte as minhas custas enquanto me viam babar e gozar loucamente pelo mesmo homem a quem, todas as noites, eu desejava, intimamente, que acordasse brocha.
Que mundo injusto, meu Deus! E o pior? O pior foi o atestado de trouxa que entreguei de bandeja nas mãos do infeliz. Cada vez que me lembro de que nem mesmo consegui falar, minha raiva volta a alcançar níveis imensuráveis e eu sofro. Agora, enquanto quase faço um buraco no chão da minha sala, tento controlar os milhares de sentimentos que me transtornam. Quer dizer. Isso não pode ficar assim, certo? Nem gritar com o maldito eu consegui. Preciso fazer alguma coisa, qualquer coisa para recuperar minimamente a minha dignidade! Mas oque, meu Deus? O quê?
O que posso fazer para me sentir menos dominado pela sua presença em minha vida, que, embora até essa manhã fosse vista como positiva, sempre foi sufocante? Nosso encontro não poderia ter deixado isso mais claro. Deus, eu queria esmurrá-lo, e, na mesma proporção, queria que ele nunca tivesse me soltado, queria colocar um oceano entre nós dois e, queria, desesperadamente, me jogar em seus braços, assaltar sua boca, e descobrir se ela tinha um gosto tão bom quanto eu vinha imaginando há tanto tempo.
Foi tão difícil me afastar, tão difícil não deixar que sua presença me controlasse, que a única maneira que encontrei de fazer isso foi fugindo, correndo e surtando. Sim! Deus, essa vergonha eu passei no crédito.
Desde que somos crianças, Lívia diz que meu grau máximo de irritação é o surto. O surto nada mais é do que o esticar dos meus dois braços ao lado do corpo, o fechar das minhas mãos em punho, e um grito que não consegue se decidir se é grito ou grunhido, e foi exatamente o que fiz ao me dar conta de que nenhuma das palavras que planejei arremessar contra ele, sairia da minha boca. Não quando tudo o que minha língua queria fazer era lamber aqueles lábios, sentir o gosto daquela pele e molhar aquele pescoço.
Eu não consigo parar de repetir o quanto isso é injusto. Esfrego as mãos pelo rosto e expiro com força.
— Vamos lá, Eric! Você é melhor que isso! Você é muito melhor que isso! Tudo bem... O que passou, passou! Acontece! Poderia ter acontecido com qualquer pessoa, ok? Com qualquer uma... -Jogo a cabeça para trás enquanto continuo meus passos apressados: ― E daí que você ficou completamente excitado só de olhar pro cara? E daí, que, do jeito que seu corpo reagiu, você, provavelmente, teria aberto a bunda pra ele mais rápido do que um foguete atravessaria a rua? E daí, em? -Pergunto para mim mesmo em voz alta, só para choramingar, também em voz alta, depois de ouvir o último dos absurdos que eu disse. Deus! Mais rápido que um foguete atravessaria a rua? Sério, Eric?
— Mas por que tão gostoso, santa dos vizinhos desesperados? Em? Por que tão gostoso? Ele não podia ser um CEO normal? Velho, ou, pelo menos, de meia idade? Mas não! Tinha que ser uma versão maior, mais loira, e real do João Pedro Govêa, aquela perdição de homem que, até hoje de manhã, eu achava que só existia nos livros?
Eu sei que eu disse que estava com inveja da Eduardo, eu sei que disse que queria um contrato para chamar de meu, universo, mas eu nunca disse que também queria ser despejado, poxa?! Minha inveja dele era brincadeira! Não era para você entubar isso em mim sem vaselina, não! Quer dizer... eu até gosto da coisa... Mas tem que ter lubrificante, no seco é difícil... -Desembesto a falar e só me dou conta do quão longe comecei a divagar quando me pego falando sobre sexo e lubrificantes, quando toda a minha energia deveria estar concentrada em encontrar uma solução para o meu problema.
O meu imenso, realmente, muito grande, problema. Muito grande... hum... Mordo o lábio. Será que ele é, na verdade, tão grande quanto nos meus sonhos? Deus, o homem sabia me fazer gritar....
— Eric do céu! Se controla! Se controla, porque você tá falando do motivo do seu despejo! do DESPEJO, ERIC! ACORDA! -grito as últimas palavras, lembrando-me de que não posso, outra vez, me deixar ser seduzido pelo maldito homem. O que fazer, o que fazer?! Gritar com ele, agora, está fora de cogitação. Queimei essa carta depois do vexame que dei essa manhã, porque, nesse momento, isso só me faria parecer ainda mais louco do que a gritaria em si teria me feito parecer. Eu preciso de um plano, mas para quê?
O que eu poderia fazer para impedi-lo, ou mudar de ideia? Quer dizer, na vida real, o despejo não vem com um CEO a tiracolo, é só ficar sem teto mesmo...
— Eu poderia seduzi-lo... -As palavras irrompem pela minha boca e eu gargalho. Rio até a barriga doer e lágrimas escorrerem pelos cantos dos olhos, porque, Deus! Não! Eu não o seduziria nem que me pagassem para isso. Até porque, convenhamos, um homem que tem um homem a cada noite em sua cama, não seria nem remotamente afetado em seus planos megalômanos de construção desenfreada pela minha sedução, não importa o quão lindo e gostoso eu saiba que sou.
— Bem, eu poderia falar com ele... -faço um bico com os lábios e o balanço para cima, para baixo, para um lado e para o outro, isso não vai funcionar, vai?... Não, não vai..., pensa, Eric... Pensa! O que você poderia fazer? Se ao menos tivesse alguém para me ajudar, afinal, duas cabeças pensam melhor que uma! Levo as duas mãos ao rosto, esfregando-o, mas logo em seguida, deixo que meus braços caiam ao lado do corpo, ao mesmo tempo em que meus olhos se arregalam.
— Puta merda! É isso! É isso! -Minha voz sai alta, quase gritada, e dou pulinhos no mesmo lugar, comemorando com um sorriso de orelha a orelha e com o coração dividido entre o alívio, o nervosismo e a ansiedade, por ter algo que eu realmente possa fazer, quase gritando eureca, sentindo que fiz a maior descoberta de todos os tempos. Pode não ser uma solução, mas é alguma coisa, e é melhor, muito melhor que nada. Duas cabeças pensam melhor que uma, o quão melhor as dezenas que moram nesse prédio de aluguel não podem pensar juntas?
Tudo bem, mas como eu vou reunir todas essas pessoas? Quer dizer... Eu não conheço todas, só algumas... Vejamos, eu poderia mandar mensagem no grupo de whatsapp do condomínio, mas todos poderiam ver, e, aqueles que são proprietários e estão animados com a perspectiva de vender seus apartamentos pelos valores acima do mercado que seu Felipe disse que a empreiteira está oferecendo, provavelmente não ficarão satisfeitos com o movimento que estou querendo iniciar e, aí, eu corro um grande risco de sofrer um linchamento virtual, então não. Essa, definitivamente, não é a melhor opção.
Posso enviar e-mails, mas, Deus! Eu precisaria analisar a lista de todos os destinatários do grupo do condomínio e, eu ainda teria o mesmo problema que tenho com o whatsapp. Como as pessoas se contactavam antes da internet, meu Deus? Cartas? Mas, como alcançar só as pessoas que me interessam? Outra vez, me pego andando de um lado para o outro na sala, mas não me julgo, ou me paro. Continuo andando, porque isso me ajuda a pensar, estar em movimento sempre ajudou.
Um, dois, feijão com arroz, três quatro, feijão no prato... Vamos lá, Eric... Como eram feitas as coisas antes? Forço minha mente, procurando por alternativas, e nada... Não é possível, precisa existir um jeito, viro o corpo, pronto para andar até o final da sala e dar meia volta só para começar tudo outra vez, mas meu quadro de cortiça, em que prendo todo tipo de papel importante, desde contas a pagar aos meus briefings de tradução e prazos finais, captura meus olhos, porque me lembra do quadro de avisos do condomínio que, hoje em dia, mais parece uma imensa sessão de classificados, todo prestador de serviços prega um panfleto lá, eu mesma estou sempre renovando meu flyer de tradução no quadro.
Inclino a cabeça, olhando para a estrutura de madeira que está ali há anos, mas que nunca significou tanto como agora. Sorrio. Aperto meus olhos e as mãos em punhos, tento me controlar, mas dois segundos depois, estou dando pulinhos infantis outra vez, porque é isso! É exatamente isso o que eu vou fazer, não é? Prestar um serviço? Vender esperança?
O quadro, então! Bato palmas como uma criança animada, a esperança faz isso com as pessoas. Nem um segundo depois, me lanço na cadeira, e, diante do computador, a primeira coisa que faço é criar um e-mail anônimo, parte fundamental do meu plano antilinchamento virtual. Depois, preparo um anúncio, não preciso pensar muito para saber o que colocar nele.
Mora de aluguel e não quer ser despejado pelo projeto de extermínio do condomínio? Mande um email para mim:
Decoro o cartaz com a imagem de um imenso diabo com uma bola de demolição na mão e imprimo várias cópias. Com elas em mãos, pego também alguns panfletos do meu trabalho como tradutor e giro a maçaneta do apartamento, pronto para espalhá-los por cada canto desse condomínio, em cada mural, de cada bloco, ou andar, depois, enviarei mensagens para os locatários que conheço por WhatsApp, e pedir para que eles espalhem para todos aqueles que eles conhecem.
A excitação percorre minhas veias como sangue, mas, assim que abro a porta, sou atingido por sua presença como por uma marreta, o impacto é tamanho que dou alguns passos para trás, me atrapalho com as minhas próprias pernas e derrubo todas as folhas no chão. O maldito ladrão de sonhos e de apartamentos está diante de mim com o braço erguido no ar e a mão fechada em punho, como se estivesse prestes a bater na porta no momento em que a abri. Pisco, atordoado, e antes que eu seja capaz de organizar meus próprios pensamentos, ele já está de joelhos, evocando imagens que se repetiram nos meus sonhos por noites a fio e me desestabilizando completamente.
Sinto minha pele esquentar e minha respiração descompassar, fico tão desconectada da realidade ao meu redor, que é só quando o percebo lendo um dos meus panfletos anti-despejo que me dou conta do que está acontecendo e de quê, novamente, eu ainda não consegui dizer nem mesmo uma palavra.