Me Chame de Mestre Parte 10

Quando era mais novo encontrei o termo “estresse pós-traumático” pela primeira vez, enquanto lia em uma revista uma matéria sobre um ex combatente de guerra que havia desenvolvido o transtorno quando voltou para casa. Sua esposava afirmava que ele ficou três meses sem dizer uma única palavra, apenas olhando para o nada, como se fosse um corpo vazio e sem alma sentado no sofá da sala de estar, parecendo não existir na realidade em que estava inserido, apenas naquela criada em sua mente através dos seus traumas.

Nunca imaginei que alguns anos depois eu estaria passando pela mesma situação, mas ao invés de lidar com bombas, eu fui obrigado a lidar com um funeral noturno em uma floresta úmida e silenciosa. Havia se passado um mês desde que a doce e simpática Jenny fora arremessada nas profundezas de uma floresta escura no mesmo lugar em que Sebastian tinha me levado para passar aquela tarde, horas antes de ele usar sua arma para aniquilar a vida de uma inocente. E minutos depois dele me arrastar pelo braço escadaria acima para que nos limpássemos, enquanto eu gritava e me debatia tomado pelo pânico.

É realmente incrível como sempre achamos que podemos ser super-heróis, como quando assistimos a um filme de terror e pensamos no quanto o protagonista é estupido por não ter feito tal coisa que poderia ter o salvado, mas a verdade é que quando nos deparamos com uma situação calamitosa nem sempre conseguimos pensar com clareza ou com a mente de um herói. Se eu estivesse me assistindo em minha TV, junto ao meu irmão, provavelmente teria apontando dezenas de maneiras de sair da situação em que eu me encontrava, e ainda maneiras de matar Sebastian. Mas na vida real, e eu sendo a pessoa na situação, eu só conseguia me desesperar. Nada mais que isso.

Sebastian retirou minha roupa suja de sangue, sem qualquer cautela ou cuidado como provavelmente faria antes, parecia que iria rasga-las com as mãos a qualquer momento, depois que me despiu tirou as dele também e me puxou para o chuveiro, onde tomamos banho, o sangue se misturando com a água e deixando o chão do box avermelhado. Quando terminamos ele me arrastou novamente, com grosseria, para fora e me secou.

– Para de chorar. Já chega! Estou me cansando desse seu escândalo. – Me balançou com força segurando meus braços, fazendo eles doerem. “Engoli” o choro. – Nós teremos que lidar com isso juntos agora, então se controle.

Me levou para o quarto, onde ele nos vestiu, colocando luvas de couro em suas duas mãos, e em seguido fazendo com que eu me sentasse para que colocasse botas pretas nos meus pés, então notei que iriamos sair, e sabia exatamente o porquê. Tínhamos um corpo naquela casa, e Sebastian não permitiria que ele morasse ali. Isso significava que eu teria que ajudá-lo no processo de se desfazer dele, dessa forma, além de ter que presenciar um assassinato, também teria que participar do processo de omissão de cadáver. Sebastian jogou um par de luvas para mim também.

– Digitais. – Pensei comigo mesmo.

Quando descemos eu apenas o observava, sentindo as lagrimas ainda caírem pelo meu rosto, enquanto ele segurava aquele corpo pálido e o colocava sobre um enorme plástico preto que havia pego no armazém que havia atrás da casa, onde o antigo dono guardava seus enlatados. Sebastian não se preocupava mais nas chances de eu tentar fugir, me deixando sozinho, mesmo quando saiu para pegar o material necessário para envolver o corpo de Jenny. Ele sabia que a partir daquele momento me tinha em suas mãos.

Poderia pensar novamente naquele personagem idiota de filme de terror, e eu do outro lado da tela explicando o que ele poderia estar fazendo para se salvar, mas a verdade é que eu não tinha vontade de fazer absolutamente nada naquele momento. O medo de errar mais uma vez e fazer com que outra pessoa fosse morta era profundamente amedrontador; olhava para o corpo de Jenny sobre o plástico preto e me perguntava se por um acaso fosse meu irmão ali, ou minha mãe, ou qualquer um dos meus amigos, o quanto eu ficaria ainda mais perturbado e quebrado por dentro. Aquela seria uma nova fase na qual eu faria apenas o que Sebastian quisesse, sem contradize-lo, sem comentários irônicos, sem tentativas de fuga, sem pensar em liberdade, sem falar, sem fazer qualquer coisa que pudesse desagrada-lo. Eu seria perfeitamente submisso a ele. Pois eu preferia isso a ter que ver mais alguém sangrando em minha frente.

Sebastian enrolou todo o corpo de Jenny pelo enorme plástico preto, e depois o envolveu com várias cordas, fazendo com que fosse impossível um dedo dela escapar por um vão. Ela parecia um corpo mumificado, porém, com plástico e cordas. Em seguida, o ergueu no ar com uma facilidade extrema, como se ela fosse mais leve que uma pluma, e a levou até a garagem, colocando–a no porta malas. Eu apenas o seguia, sem nem ao menos receber alguma ordem.

Alguns minutos depois e estávamos a caminho do futuro tumulo de Jenny, tanto Sebastian quanto eu estávamos em silencio, eu ainda chorava silenciosamente, olhando pela janela, me sentindo tão cansado. Quando chegamos no lugar que ele havia escolhido, descemos do carro e Sebastian novamente pegou aquele corpo e adentramos a floresta escura, úmida e fria. Depois de muitos passos ele colocou o enorme pacote preto no chão, enquanto eu iluminava tudo com a luz mediana de uma lanterna que ele havia me dado quando entramos na floresta. A lua estava cheia, nos ajudando a iluminar o caminho.

Em nossa frente havia um enorme, profundo e escuro precipício, e não precisei muito para entender qual era o plano de Sebastian.

– Preciso de sua ajuda. Você segura as pernas dela e eu seguro a cabeça, vamos balança-la e joga-la.

Coloquei a lanterna no chão e segurei o grande pacote preto, sentindo as pernas de Jenny, Sebastian segurou onde provavelmente eram seus ombros e a erguemos no ar, ela era leve, mas ainda mais leve para ele e seus braços fortes.

– No três.

– Um. – Balançamos para minha direita.

– Dois. – Para a esquerda.

– Três. – Para a direita e soltamos.

E então o corpo de Jenny desapareceu na escuridão do “Precipício de Nagasaki”. A história do nome do local havia sido contada para mim, por Sebastian, dias depois enquanto jantávamos. De acordo com ele o lugar ganhou esse nome na década de oitenta. Devido a sua profundidade e escuridão durante a noite, muitas pessoas costumavam se encontrar em sua borda até que ocorreu o caso de Natasha Nagasaki. Ela, seu marido, e seus dois filhos haviam ido passar uma tarde sobre as árvores nas bordas do precipício, que até então chamavam de Garganta do Diabo, quando não voltaram para casa sua irmã Dakota Nagasaki chamou seu marido Tom Duff para os encontrarem, após horas de busca eles não foram encontrados, tendo assim que acionar a polícia. Uma semana depois Natasha foi localizada em outra cidade junto de seu amante, Victor Ricci, juntos admitiram que haviam matado os filhos e o marido de Natasha. Dizem que quando a polícia a perguntou se havia tido arrependimento de ter matado sua própria família ela apenas respondeu: – Só me arrependo de não estar vestida adequadamente quando a polícia me encontrou.

Com o tempo as pessoas perderam o interesse pelo local, então ele acabou se tornando apenas um lugar qualquer, para se levar garotos em cativeiro e desovar corpos.

– Pegue sua lanterna. Vamos.

Sebastian já não segurava minhas mãos igual fez durante aquela tarde, foi como se o caso com Jenny tivesse lhe dado confiança suficiente para saber que poderia me deixar sozinho naquela floresta e saberia que quando voltasse eu estaria o esperando, por medo de que ele fizesse com alguém o que tinha feito com ela. Naquela noite, junto com o corpo de Jenny, minha determinação havia sido jogada precipício abaixo.

Após aquela noite minha relação com Sebastian se transformaria em algo completamente diferente do que havia sido até então.

UM MÊS APÓS A MORTE DE JENNY...

Eram dezoito horas, sentado à mesa de jantar olhava para o quadro repleto de flores escuras pendurado na parede da sala de jantar. Podia sentir o cheiro de frango e curry se esvaindo do forno e espalhando-se por todos os cômodos da casa, se misturando com o aroma do perfume de baunilha que eu havia passado em minha pele após o banho. A gargantilha, que mais aparentava uma coleira, de couro preto, com um pingente quadrado, com as iniciais A.S, pendurada em meu pescoço combinava perfeitamente com o restante da roupa que poderia ser descrita como um conflito impetuoso “Noir & Blanc”. Sebastian chegaria em trinta minutos.

Antes de sua chegada o frango com batatas já se encontrava centralizado sobre a mesa, os outros condimentos haviam sido distribuídos por mim em vasilhas quadradas de porcelana; pratos, guardanapos, talheres, e taças foram colocados nos polos da mesa. Com minha mão apoiada no topo da cadeira de madeira provençal eu ouvia ele destrancar a porta, enquanto meu corpo se mantinha reto em uma postura impecável, aguardando sua entrada.

– Bem-vindo de volta! O jantar está pronto.

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