As ruas do teu corpo - 5 e 6 (Final)

[PARTE 5/6: REAL AMOR]

NA MANHÃ DE NATAL, descobri que Alex não trabalharia mais comigo na Josh & Lander. Uma amiga de lá me avisou que ele pedira demissão subitamente. Nem sei dizer em quantos caquinhos meu coração se partiu naquela manhã...

Como seria o dia sem o sorriso perfeito dele aberto ao me ver por ali? E aqueles olhos pidões, sempre insatisfeitos e dengosos, e tão mansos? Ou, sua voz, seu sotaque? Eu mesmo não sabia. Dei de ombros, o coração rasgado. Fechei os olhos e quis que tudo retrocedesse e fosse como antes. Nada mudou, porém.

Meses depois, descobri que Alex trabalhara como modelo no Rio por algum tempo antes de voltar para Cape Town. Aquela amiga trouxe uma revista onde ele posou sorridente e descamisado para uma revista fitness carioca. Via-se logo que o sorriso era mesmo pose. O sorriso verdadeiro eu conheci bem de perto.

Recortei a fotografia mesmo assim e a guardo comigo até hoje.

Quando minha mãe regressou de sua viajem, em Janeiro de 1993, meu pai não comentou nada com ela sobre o que tinha visto acontecer entre mim e o Alex. Ele se impôs silêncio. Não falava comigo de nenhuma forma. Me ignorava, desviava de mim. Mais que isso, eu sentia que ele me desprezava ante aos meus outros irmãos.

Toda vez que algum irmão meu arrumava uma namorada ou qualquer vadia na rua para se aliviar dessa vida nojenta, ele explodia num orgulho oco. Dizia que aquele era o filho macho dele, um homem de verdade...

Eu tentava ignorar, mas confesso que doía, incomodava. Minha mãe chegava mesmo a perceber aquele desprezo específico para comigo. Certa vez conversamos sobre muita coisa, agachados ao tronco de uma árvore no parque central. Falamos, rimos, recordamos, mas não cheguei a contar o que o papai tinha visto.

O tempo pingava, vagaroso. Parecia infinito. Confesso que aqueles dias dentro de casa eram tortuosos. Essa ideia já vinha rolando na minha cabeça há tempos quando então decidi de vez que estava na hora de eu morar sozinho. É, e fui mesmo, de mala e cuia. Uma ótima decisão.

Lembro-me que minha mãe me abraçou e quis chorar, mas compreendeu, afinal, que eu tinha asas e vontade própria de usá-las. Tocar o céu, quem sabe. Agarrar as minhas próprias posses. Além disso, eu nunca quis magoa-la, juro que nunca quis.

Naqueles dias, quando subi a escadaria para buscar minhas malas, meu pai me esperava dentro do meu quarto. Tomei um susto quando entrei e o flagrei com a fotografia que eu tinha recortado e guardado do Alex.

Ele me olhou com nojo.

Voei sobre ele quando fez menção de rasgar a foto, até que ele a soltou. Meus olhos estavam marejados e meu peito arfava de raiva. Eu estava explodindo. Precisava mesmo ir embora.

― Por que você gosta tanto desse moleque? ― ele perguntou, incisivo; a voz rígida.

― Pai... eu...

― Vai, diz... É porque ele é mais bonito? Porque ele tem o pau maior que o meu?

Depois dessa última pergunta, eu apenas o olhei, calado. Sua voz tremulava e pela segunda vez em toda uma vida eu tornei a ver lágrimas minarem nas suas pálpebras. Chorou como uma criança. Seus olhos estreitos e úmidos me focavam como se me pedissem perdão ou algo mais que eu não entendia ou ignorava.

Eu peguei a alça da mala e a ergui do carpete, ainda atordoado. Ele então repousou a mão sobre a minha.

― Não vá ― ele pediu, as bochechas brilhando das lágrimas e os lábios tremendo, confusos.

Eu soltei a mala. Senti pena. Meu pai nunca antes fora um homem de escândalos, de choro. Muito pelo contrário, sempre foi correto, decoroso, exemplar. Sorridente, para cima. Ele não deixou de ser nada disso que mencionei, mesmo depois de ter me feito o que vou contar. Ele se tornou também corajoso.

Lá na rua, o táxi que eu havia solicitado estacionou e buzinou duas vezes. Meu pai deslizou um dedo pelo meu rosto, com delicadeza, enquanto eu o olhava inexpressivo. Ele encurtou a distância física entre os nossos troncos e o improvável aconteceu.

Ele me beijou. Me beijou com fogo. Me beijou como um homem beija a mulher amada depois de anos de saudade.

Cheguei a sentir a sua boca sorvendo o ar dos meus pulmões, suas mãos fortes e grandes a me aprisionarem contra o seu corpo febril de homem. Me senti sugado. Minha mãe irrompeu o quarto em seguida, segurava um embrulho tímido nas mãos. Devia ser a carta que me escrevera. O forçado sorriso de adeus que ela trazia para mim, vi desvanecer até uma lágrima fina de decepção brilhar no seu rosto triste. Aquilo me destruiu, mesmo eu já sendo ruína há tempos.

Eu juro que nunca quis magoá-la...

Ela sempre vai ser a última pessoa que eu quererei magoar.

** ** **

[PARTE 6/6: EPÍLOGO - FINAL]

ELA SAIU E fechou a porta deixando eu e papai ali, estáticos em nosso choque.

Ele passou a mão pela cabeça e rosto, gelado. Eu ainda estava imerso na paralisia. Duplamente destruído, duplamente traído. O chão era tudo o que eu tinha agora. E como não havia mais nada para mim naquela casa, peguei a mala e fui embora.

Fui embora, mas deixei cada gota de mim no caminho.

Quando cheguei ao meu destino, eu já era deserto.

Eu não sei se passaria por tudo isso de novo. Foi metade de uma vida, praticamente. Perdi a minha mãe e o meu real amor. Na verdade, perdi meu pai também. Entre nós, agora, só silêncios. Mas eu os entendo bem. Se nesta história teve vilões, todos eles foram eu.

Mamãe pediu o divórcio. Não teve acordo. Hoje ela mora em Angra. Parece que adotou uma filhinha canina e está bem com o seu novo namorado. Do papai, não tenho muitas notícias. Também esteve com outras, segundo me contaram, mas não chegou a se casar com nenhuma. Sinto que nunca mais os verei. E isso é amargo.

Já eu, se ainda te interessa, estive indo para a África do Sul mais de uma vez. Quantos Alex Kotze viveriam por lá? E eu ainda tinha uma esperança, uma fagulha, mesmo que vaga, eu a tinha, sabe? Se bem fosse nem uma esperança: era mais um combustível.

Nunca o reencontrei, porém.

Talvez só por ele eu vivesse tudo de novo. Para fazer tudo diferente. Tomar outras estradas.

Mas hoje já não sou mais o jovem passional de antes. Não gosto de assistir aos outros viverem. Superei a fase da televisão e tomei o meu protagonismo nas mãos, embora tarde, embora tendo perdido a minha base pelo caminho. Mas se antes tropecei e caí, hoje estou bem. E estou bem por um fato em especial.

Se esta história tivesse um sabor exprimível, seria o amargo. Tudo nela é amargo e pouco me recordo dos momentos doces. Tudo é vergonhas e remorsos, e o peso é demais para se carregar. Um dos momentos doces aconteceu no natal lá de 2002. Eu estava num pub, no Brás, sentado, cotovelos no balcão, olhando o meu copo. No copo, eu não via só a cerveja. Via um filme triste, e eu era o protagonista. Tanta coisa eu tinha conseguido, mas sempre terminava sozinho. Então passou por mim um perfume muito conhecido. Chamou a minha atenção. Me voltei para trás caçando quem usava aquele perfume. Bastava ver o rosto, o jeito, a roupa, que fosse. Isso apenas me desconsolaria. E vi. Vi que nem cri, vi que perdi a cor.

― Alex? ― eu disse, pasmo e ansioso.

Ele não respondeu. Virou-se para mim e simplesmente sorriu.

** ** **

FIM | J.B., janeiro de 2020

cabou-se o que era doce

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