[LGBTQ+] PANDEMIC LOVE - DIÁRIO DE UMA QUARENTENA / 10 - PEQUENO PRÍNCIPE
OI, GENTE. SÓ PASSANDO PARA DESEJAR UMA ÓTIMA SEXTA-FEIRA. APROVEITEM, MAS SE CUIDEM, VIU!
Uma merda! Assim que me senti naquela manhã chuvosa de quinta-feira. A dor de cabeça estava reinando, e a garganta péssima. Nunca tinha sentido nada parecido na vida, Doutora. O meu corpo tremia, nem percebi quando a enfermeira Nadine entrou. Ela deixou alguns remédios na estante, pegou um termômetro digital, apontou para minha testa e mediu minha temperatura.
Acho que meu caso era sério. A Nadine usava uma daquelas roupas brancas, que geralmente vemos em filmes de zumbis. Me senti um lixo radioativo. Imaginei, meus familiares usando aquele traje também, afinal, Rosa e eu, ainda estávamos no início da doença, ou seja, éramos contagiosos.
Pela cara dela, o número na tela deve ter sido alto. A enfermeira franziu as sobrancelhas, arrumou os óculos e anotou o número em uma prancheta. Eu queria conversar, mas estava tão sem energia, não sei direito, uma angústia dentro de mim, também tinha a preocupação com a Rosa.
Puta merda, maldita Rêh. Maldita hora que ela chegou na fazenda. Era para eu aproveitar meus dias com o André, mas agora estou aqui, deitado, derrotado, possivelmente, morrendo por uma doença desconhecida. A Regina era uma menina muito pequena, media uns 1,60 cm, podia facilmente esmagá-la. Se alguém me passou Corona, tipo, posso matar essa pessoa, não é?
Brincadeira! Ainda não cheguei a esse ponto. E nem sei porque fiz plano de vingança. Sou incapaz de me vingar de outro ser humano, mas levando em consideração que a Regina é uma bruxa, acho que a possibilidade fica mais real.
Estava enjoado, chato e temeroso. A única que podia cuidar de mim estava tão doente quanto eu. Levantei, olhei pela janela e a chuva ainda caia. Por algum motivo, aquela cena me tranquilizou. A água caia na grama, algumas árvores dançavam com o vento, as gotas criavam formas dentro dos poços que se formavam no chão, consegui esquecer da doença mortal que habitava dentro de mim.
— É maravilhosa, não é? — Perguntou Nadine, sem olhar para mim, aparentemente, dosando alguns remédios.
— Oi? — Questionei com outra pergunta. — Desculpa, odeio quem responde com outra pergunta, mas não estava prestando atenção.
— A chuva. Ela também tem o poder de me acalmar. Olha, Higor, você é novo, tenho certeza que vai ficar bom. Seu único objetivo é melhorar.
— Obrigado. Nadine, mais alguém na fazenda pegou o Corona?
— Não, graças a Deus. Por isso, o cuidado precisa ser redobrado. Hoje, quando você for tomar banho, uma equipe vem fazer a desinfecção do teu quarto. Esses dias iniciais são cruciais.
— Você deve estar torcendo para a parte do contágio passar, não é? Essas roupas devem ser horríveis. — Comentei, olhando para Nadine e forçando um sorriso.
— Estou acostumada!
As horas passam mais devagar quando não se tem nada para fazer. Antes do banho, precisei enrolar, pois, a equipe levou 30 minutos para limpar meu quarto. Podia ter ficado no quarto dos meus pais, pelo menos lá tem uma banheira enorme. Eles construíram depois que o vovô morreu.
Na hora do jantar, a Nadine trouxe uma sopa de carne. Pelo jeito, a minha mãe fez aquela obra de arte. Sério, Doutora, a carne estava pálida, havia um tom de tristeza naquele prato. Ao menos, o tempero agradou, sabe, aquele tipo de comida feia, mas que faz sucesso. Os remédios me deixaram sonolento, então, peguei um livro e comecei a folhear as páginas.
De repente, ouvi uma batida na janela. O meu coração acelerou, o André estava na frente da minha janela. Cheguei perto, e ele segurava uma carta em suas mãos. Ele vestia a mesma camiseta e calça, acho que era o seu pijama. O André usava uma máscara de pano e um par de luvas de plástico, essas que as donas de casa compram.
— Eu fiz algo para você. Sei que não podemos nos ver, então, queria mostrar como estou evoluindo.
— Eu... eu... nossa... — Gaguejei abrindo a janela e pegando a carta. — André, não precisava. É muito arriscado.
— Toda noite vou subir aqui, deixar uma carta. Estou estudando muito. Todas as noites.
— Você não precisa parar. O Quintino pode te ajudar. Ele é muito inteligente, e também uma ótima pessoa. — Sugeri, segurando o choro.
O momento foi atrapalhado pela Nadine. Eu tive que fingir uma normalidade. Ela pediu para eu sentar na cama e mediu minha temperatura. Essa seria a minha vida por duas semanas, pelo que percebi, alguns dias bons e outros nem tanto. Nadine desejou boa noite e saiu do quarto. Recebi uma chamada de vídeo do Quintino.
— Sobrevivendo? — Ele perguntou usando uma máscara.
— Sim, firme e vivo, forte ainda não sei. Você sabe que o corona vírus não passa pelo celular, não é?
— Cara, estou com saudades. Essa casa fica muito vazia sem você, tipo, mesmo você estando nela.
— Entendi! Quintino, preciso te pedir um favor, mas antes, quero que você não faça nenhuma brincadeira.
— Prometo. — Ele disse mostrando as mãos.
Contei para o Quintino os problemas do André. Não sabia se estava fazendo a coisa certa, mas ele podia ajudar. Expliquei sobre as aulas, mandei os links das coisas que assisti. Basicamente, transformei meu primo no professor substituto. Para a minha surpresa, o Quintino reagiu de uma forma acolhedora e topou o desafio.
Deixei o Quintino estudando a programação de aulas do André. Peguei a carta e abri. Haviam muitos erros, o que deixou a declaração ainda mais linda.
Oi Igor
Eu nao sou igual o seu Aroldo que fas bela carta
Gosto muito de voce e espero que fique bom logo
Poucas palavras! Palavras que tocaram meu coração. Não segurei o choro, e eu não deveria ter feito isso, o meu nariz entupiu, quase não conseguia respirar. Como o André conseguia ter esse poder sobre mim? Nunca tive pretensão de namorar ou gostar de alguém, mas ele entrou no meu coração de uma forma tão pura e doce.
— Foi o tempo que dedicaste à tua rosa que a fez tão importante. — Disse uma voz vinda do notebook.
— Quintino? — Perguntei pegando o notebook e percebendo que a câmera ainda estava ligada.
— Ainda bem que não te vi assistindo a um pornô gay. Agora mudando de assunto, primo querido. Você ama o André, não é? — Ele questionou.
— Nem sei o que sentir. — Falei pegando um pote de Vicks Vaporub e passando no nariz. — Acho que ele gosta de mim, mas não tenho nada de especial, Quintino. Não sou atlético, não pareço o modelo de uma campanha da Calvin Klein, eu não sou ninguém.
— Tu não és para mim senão uma pessoa inteiramente igual a cem mil outras pessoas. E eu não tenho necessidade de ti. E tu não tens necessidade de mim. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás pra mim o único no mundo. E eu serei para ti a única no mundo. — Proclamou Quintino, fazendo gestos com as mãos.
— Você sabe que gesticula bastante, não é? Já vi a mamãe fazendo mil testes, ela nunca fez isso. — Brinquei imitando o Quintino. — Mas você tem razão. O André é muito doce e inocente. Sei lá, meio que vivemos em um mundo de aparência.
— Se tem uma coisa que aprendi com o Pequeno Príncipe foi o essencial é invisível aos olhos, e só se pode ver com o coração. Brega? Com certeza! Verdade? Sim. Higor, você é o cara mais legal, gentil, inteligente e sensato dessa família, depois de mim, claro. Olha, eu sei que o Lukas é gostosão, e a Rêh, deslumbrante, mas você tem o seu valor.
— Quintino, obrigado. Estou sendo aconselhado pelo meu primo de 15 anos. — Comentei rindo.
— Quase 16.
— Teu aniversário é em dezembro, garoto.
— Enfim, agora preciso ir. Se cuida e bebe bastante líquido. — Ele orientou antes de desligar.
Acordei com uma forte tosse, mais um sintoma do Covid-19. Inferno!! Toda vez que eu lembrava da doença tinha uma vontade de matar a Regina Duarte, não a atriz, mas minha irmã diabólica que trouxe uma pandemia para dentro de casa. Os remédios me davam náuseas, principalmente, as injeções.
Acabei vomitando todo o café da manhã, ou seja, pedaços de maçãs, pão e suco de laranja pelo chão do meu quarto. Tomei um banho, mesmo contra vontade, a Nadine devia estar acostumada com esse tipo de coisa, porque não fez cara de nojo, muito pelo contrário, tirou minha camiseta, limpou tudo. A minha cabeça parecia um carrossel, e não um fofinho igual ao do SBT, mas aquele que aparece em Silent Hill 3 (um jogo de terror psicológico onde a protagonista precisa matar a versão maligna dela mesma).
O meu banheiro não é muito grande, considero um padrão comparado ao dos meus pais, por exemplo. Achava ele muito branco, as paredes brancas com os azulejos brancos. A pessoa que decorou estava em uma fase muito Pinterest. Fiquei ajoelhado no chão, as pernas tremiam demais para ficar em pé, a cada tossida um jato dentro do vaso. Criei um sistema para não morrer afogado, tossia, vomitiva e limpava a boca. Uma cena nada agradável.
Decidi tomar um banho, olhei no espelho e reparei que tinha vômito por todo meu corpo. Estava imundo, fedido e carente. Queria muito a Rosa para me abraçar, dizer que estava tudo bem. Dentro do box, sentei no chão do banheiro, a água quente caía sobre minha cabeça.
— Meu filhinho está dodói? — Perguntou Rosa se aproximando.
— Rosa... você não... — Estava sem forças para formular alguma frase que fizesse sentido.
— Ei, eu estou aqui. — Ela disse me tranquilizando. — Esse cabelo está imundo.
Eu me entreguei. A Rosa lavou meus cabelos, igual quando eu era criança. Ela adorava os cachinhos que se formavam e sempre dizia que aquilo era o meu charme. Comecei a chorar, pois, percebi que aquilo acontecia apenas na minha cabeça. A Rosa continuava no outro quarto, lutando tanto quanto eu.
Retornei e o quarto estava um brinco. Nem parecia que o meu café da manhã tinha sido jogado pela cama. Acho que a equipe limpou tudo em tempo recorde ou passei mais tempo que o esperado no banheiro. Agradeci bastante meus pais, não imagino as dificuldades que as famílias do país estão passando com essa doença maldita.
Havia uma caixa em cima da escrivaninha e abri com uma certa alegria. Dentro um Nintendo Switch e uma cartinha do Lukas. Ele pediu perdão e marcou uma partida de Mario Kart 8 para às 19h. Conectei o videogame na televisão, baixei o jogo e treinei bastante, não queria ser derrotado pelo chato do meu irmão.
Os mapas do Mario Kart são maravilhosos, sempre tem alguma pegadinha. A minha personagem favorita era a princesa Peach, mais conhecida como namoradinha do Mário. Sempre a selecionei, afinal, se for para ganhar que seja com uma diva, né? Até a Nadine jogou uma partida comigo, mas a roupa de segurança atrapalhou um pouco, essas foram as palavras dela.
Depois de muito treinar, os meus dedos pediram uma folga dos controles do Switch. A Nadine trouxe o jantar, e até estranhei, uma sopa de cebola deliciosa, cremosinha e apetitosa. Para minha surpresa, a responsável pela prato foi a Regina. Será que estava envenenado? Deus me livre! Já não bastava ter o corona me corroendo por dentro.
Meu relógio marcou 19h. Nunca fiquei tão alegre na vida. Devia estar desesperado por atenção, porque jogar com o Lukas se tornou meu evento da noite. Liguei o game, e recebi o convite da partida online. Para a minha surpresa, o Quintino e André apareceram na partida. Confesso que demorei para digerir aquilo, peguei o celular e mandei uma mensagem para o Quintino.
Higor diz:
Que merda é essa? (emoji confuso)
Quinto dos Infernos (emoji de diabo) diz:
Oq?
Higor diz:
O André... no Mário...
Quinto dos Infernos (emoji de diabo) diz:
Cara, nem te contei, não é? O Lukas encomendou 3 nintendos. Um para ti, outro para mim e para o Homem do Campo. Estamos jogando aqui na sala, mas não se preocupa, um longe do outro. Tão bonito ver os cunhados juntos. #sejoga #teuirmaoaceitou
Higor diz:
Okay. Vou tentar não surtar, e por favor, te controla #temato
O pessoal começou a entrar na partida, quando comecei a ouvir a voz do André. O coitadinho estava completamente perdido. Acho que nunca havia participado de uma jogatina online. Tranquilizei a todos, expliquei que o medicamento estava fazendo efeito, okay, posso ter floreado a verdade, mas eu não sentia mais o enjoo.
Tivemos que explicar todas as regras para o André. O Quintino e o Lukas, na verdade, eu não conseguia manter um diálogo descente com o garoto, ficava gaguejando e suando frio. Mas, Dô, qual é, acho o Mário Kart uma das coisas mais simples da história, com todo o respeito, até a senhora conseguiria jogar.
Lembro na infância, que o Lukas sempre deixava eu jogar, isso quando ele não estava ocupado com ensaios e shows. Enfim, após uma boa explicação sobre o sistema de jogo, nós decidimos começar de uma forma mais light. Eu nem comentei o treino e nem a forma gloriosa que derrotei a Nadine.
Agora um momento tenso. Hora de escolher um dos 41 personagens disponíveis. O Lukas optou pelo Mário; Quintino escolheu o Bowser (inimigo mortal do Mário, que adora sequestrar princesas inocentes); André demorou um pouco, mas selecionou o icônico Donkey Kong, já eu decidi ir com a versão metal da Peach (coisa mais linda da vida). Pelo fone de ouvido, escutava o Quintino explicar as coisas para o André.
— Homem do Campo. É muito simples. Durante a corrida, você vai coletando itens para atrapalhar o Higor e Lukas. Se tacar em mim vai ser penalizado. — Ouvi meu primo dizer.
— Quintino. — Repreendemos Lukas e eu. Senti falta de estar perto do meu irmão, se fosse em outra situação nós duelaríamos por uma possível vantagem. Meu pedido? Para ele não usar mais drogas.
— Mentira, André. Você pode atacar qualquer um. Cada item te dá uma vantagem. O importante é aproveitar e se divertir. — Comentou Lukas, sendo um irmão maravilhoso.
— Cara, posso nem tentar uma vantagenzinha. Sou péssimo. — Lamentou Quintino, fingindo uma chateação na voz.
— Senhores, liguem seus motores, e que o melhor corredor vença! — Gritou Lukas iniciando a partida.
Iríamos disputar a taça do Cogumelo. A primeira pista era do Mário. Liguei dentro de mim, o modo competidor e nem lembrei mais de ninguém, quer dizer, algumas vezes, ajudei o André, como por exemplo, na hora que entrei na frente do Lukas para levar o dano de uma casca de tartaruga vermelha, eu sei Doutora, escrevendo assim parece confuso, mas salvei o meu crush.
Que noite divertida. Ri bastante, deu até fome, então, pedi um mingau de aveia para tomar. Novamente, fiquei surpreso quando a Regina trouxe. Ok, o mingau não tinha gosto de nada, mas ela queria fazer o bem. Será que era a culpa? Espero que sim. Assim, ela aprende a ter empatia pelas pessoas. Jogamos por bastante tempo, o André nos surpreendeu e venceu algumas partidas.
— Higor, irmão. Eu sei que não é fácil, mas estamos torcendo por você. — Comentou Lukas.
— Isso mesmo, primo. Tem uma torcida enorme aqui fora. — Disse Quintino.
— Verdade. Você vai superar isso. — Falou André, me fazendo corar.
— Gente, obrigado. Agora preciso dormir. Amanhã podemos jogar novamente. — Agradeci.
— Ah, pega seu game. — Ouvi André falando com o Lukas.
— É seu. Um presente por fazer o meu irmão feliz. — Ele explicou desligando o grupo.
Nossa. Eu quase chorei. O meu irmão disse para o André que ele me fazia feliz. A noite só não foi melhor por causa da maldita tosse. Minha garganta estava inflamada por demais. Queria ser otimista sobre o corona vírus, mas cada dia algo acontecia.
Nadine chegou e mediu minha temperatura... spoiler... 39 graus. Ela reclamou do cheiro do mingau, parecia queimado. Eu ri, pois, provei e não tinha sentido sabor nenhum na verdade. Nadine, olhou com preocupação para mim, pegou a prancheta e anotou. Odiava quando ela me tratava daquele jeito, como um doente terminal.
Descobri por ela, que um dos sintomas do Covid-19 é a falta de olfato e paladar, ou seja, estava ferrado. Lembrei da carta do André e da citação do Quintino, abri o kindle e pesquisei o livro Pequeno Príncipe. Acabei adormecendo, o aparelho ligado em minhas mãos, durante a ronda, Nadine pegou o meu livro virtual e percebeu que minha temperatura havia aumentado, alcançado quase 40 graus.
— Higor. — Ela lamentou pegando a prancheta.
Disse a flor para o pequeno príncipe: é necessário que eu suporte duas ou três larvas se quiser conhecer as borboletas. Foi a última coisa que li antes de perder os sentidos. Será que a flor sofreu muito para saborear a verdadeira felicidade? Bem, não sei quanto a ela, mas a cada dia me sentia mais um pedaço de coco. Doença maldita. Eu perderia essa batalha? Só o tempo poderia dizer.
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Ele sabia que o vento
Quando soprava a cantar
Era saudade e lamento
Pra quem sabe amar.
E o deserto então guardou
Uma lembrança tão gentil
Pequeno príncipe partiu
E não retornou
(Ronnie Von)