Sweet Nothing - Vento
“Não se deve olhar, mesmo que por um instante, o fundo do abismo”
A frase não fazia sentido algum para mim, mas não conseguia parar de lê-la compulsivamente enquanto soltava mais fumaça pela boca. Meu estomago doía, minha cabeça pesava no travesseiro. O álcool do dia anterior não queria me deixar sair da cama. O álcool, aquela frase estranha na parede e o lugar desconhecido. Do meu lado, na cama que não era a minha, tinha alguém coberto da cabeça aos pés.
Levantei procurando um cinzeiro, a cinza estava quase caindo. Não queria sujar o quarto de alguém que eu nem sabia o nome, gênero, cor dos olhos ou quaisquer outras informações. Minha última lembrança clara era ter saído de casa. Os flashes da noite pulsavam sem sentido algum. Luzes, algumas doses, uma sala escura, bocas me beijando, mais doses, um maço de cigarro de filtro branco (eu sempre comprava o filtro amarelo), mais doses, alguém me colocando no taxi, conversas das quais não lembro uma palavra sequer e mais doses. Nenhuma das lembranças incluía ficar pelado no quarto de alguém.
Maldito álcool, maldito quarto sem nenhum cinzeiro. Eu podia fumar ali?
Olhei em volta e fosse quem fosse deitado na cama não podia ser uma pessoa ruim. As paredes brancas estavam escritas, com pedaços de poesias, músicas e sei lá mais o que. Era um cômodo simples com armário, cama e três prateleiras lotadas de livros. Abri a janela e coloquei o rosto para fora. Chovia bastante. Traguei mais uma vez antes de sentir um braço no meu ombro.
“Você tem nome? ” – A voz era grave, rouca e definitivamente de um homem.
“Leonel. Agora me sinto bem menos culpado por não saber o seu nome. ”
Ele sorriu, tirou o braço do meu ombro e se espreguiçou. Era um cara bonito, do tipo que me faria acordar em algum lugar desconhecido depois de ter feito sei lá o que tínhamos feito.
“Não vai perguntar meu nome? ”
“Aposto que é algo bem másculo. ”
Sorriu de novo e eu tive certeza que foi aquele sorriso que me fez parar ali. Ele era alto, magro, com olhos, cabelo e barba pretos. Nada demais, porém aquele sorriso torto e branco era o que mais chamava atenção. Isso e fato dele ter escrito nas paredes do próprio quarto.
“O que quis dizer com aquela frase? ” – Perguntei apontando.
“Não se deve olhar, mesmo que por um instante, o fundo do abismo. ” – Leu coçando o queixo. – “Vai me julgar se eu disser que não faço ideia? ”
“Não. Mas vou perguntar o porquê escrever frases as quais você não sabe o significado no próprio quarto. ”
“Olha, Leonel, é fácil. Vem comigo. ”
Joguei o cigarro pela janela e o segui até a parede oposta. Ele pegou uma caneta piloto preta e deu na minha mão.
“Quando você olha pra esse quarto, esse momento, pra mim. O que você pensa? ”
“Que eu devia frequentar o AA” – soltei a frase já esperando aquele sorriso, que veio, mais bonito que antes. Ele não falava nada, apenas me olhava como se entendesse o que eu não tinha dito. Olhei em volta, li as outras frases e por fim, encarei seu rosto.
Ele parecia cansado, apoiado na parede pelo ombro, me olhando de cima a baixo. Estávamos nus, não sei como levei tanto tempo para reparar nesse fato, talvez tenha sido o sorriso lindo e....
Haviam frases de outras pessoas ali, então não seria um problema eu colocar uma do meu filme preferido. “Destruction is a form of creation”. Ele deu um passo para o lado e leu o que escrevi.
“Donnie Darko. Eu amo esse filme. ” – Falou passando o dedo indicador pelas minhas palavras como se quisesse sentir o porquê da escolha. – “Mas minha frase preferida dele é....”
Estendeu a mão e o entreguei o piloto. Logo em baixo da minha frase ele escreveu: “Why are you wearing this stupid man’s suit? ”. Um trovão rugiu e a chuva pareceu mais violenta. Ele abaixou, pegou um maço de cigarros que estava no chão e me entregou.
“Quer mais um? ” – Perguntou já indo para a janela.
“Aceito. ” – Respondi já acendendo e o acompanhando. – “Esse cigarro, é meu? ”
“Eu comprei. ”
“Você fuma? ”
“Não. Mas você fica tão lindo fumando que eu não queria que parasse. ”
Soltei a fumaça quase engasgando pela vontade de rir. Meu cabelo estava todo bagunçado, eu ainda não havia tomado banho, escovado os dentes ou se quer me olhado no espelho. Duvido um pouco que eu estivesse bonito, muito mais lindo.
“É assim que dá em cima das pessoas na noite? ”
“Não sou desse tipo. ”
“Então por que acordei pelado na sua cama? ”
“Você vomitou na própria roupa no caminho. ”
“Você também está pelado. ”
“Só durmo pelado. ”
“Então, não transamos? ”
“Eu não disse isso. ”
Sorriu mais uma vez e tive certeza de que tínhamos transado. Não que eu conseguisse perceber pelo meu corpo. Ele podia não ser daquele tipo, mas eu era. Podia apostar que o vi em algum momento sorrindo e fui puxar assunto de uma forma completamente aleatória enquanto fingia estar sóbrio.
“Tem planos pra hoje? ”
“Eu tinha. Essa chuva acaba de cancelar tudo. ” – Menti, não havia plano algum.
“Posso propor então? ”
“Claro.”
“A gente toma banho, pede comida e vê algum filme no estilo Donnie. Até lá chuva vai ter parado ou você vai ter esquecido de ir embora. ”
“Acho que posso fazer isso. ”
“Always Black and White, in my eyes. I’m colorblind”
Leonel já estava dormindo há algum tempo quando essa frase em especifico chamou minha atenção. Não lembrava o por que a escrevi, nem de onde tinha visto, mas estava ali. A frase e ele. Sorri sozinho enquanto o filme passava e ele dormia deitado na minha perna.
Estranho como um desconhecido pode ser tão significativo. Eu tinha saído para beber e esquecer dos problemas quando ele apareceu. Estava claramente alcoolizado, mas não parecia bêbado. Conversamos por horas sobre tudo e sobre nada.
Duvido que lembrasse que me contou sobre sua vida, seu trabalho, seus amigos, seus amores. Eu lembrava, de cada frase, de cada cena. Éramos parecidos em vários níveis, nossa dor, nossas perdas, nosso gosto por doses. Diferentes apenas na forma de canalizar tudo isso, ele grita enquanto eu escrevo. Ele duvida, enquanto eu creio. Ele dorme, enquanto eu o observo franzir a testa mesmo sonhando. Leonel fez muito isso, antes de cada resposta, antes de cada pergunta. Parecia pensar muito sobre tudo, até dormindo pelo que eu via e sorria por ver.
Na volta ele vomitou para fora da janela do taxi, mas respingou na sua camisa. Não lembrava onde morava, ou pra quem poderia ligar. No quarto tirei sua roupa, tirei a minha, deitamos e dormimos pra que de manhã eu admirasse a forma como estava empinado com a cara pra fora da janela fumando. Leonel ficava lindo fumando. Parecia menos tenso enquanto fazia isso, ele sempre parecia tenso. Como se o mundo fosse preto e branco. Colorblind.
“Como foi que puxei assunto com você?”
Olhei pra baixo e ele me observava. Minha camisa estava apertada nele. O que me fez sorrir, um homem grande e barbudo com uma camisa rosa colada no peitoral e nos braços.
“Você disse que meu sorriso parecia com o de um personagem de novela. ”
“Lindo? ”
“Não! Você usou a palavra fabricado. ‘Nenhum sorriso pode ser tão bonito assim sem ser falso’, foi o que disse. ”
Foi a vez dele rir, rolando pro lado e ficando sentado ao meu lado.
“Isso parece algo que eu diria. ”
“Isso foi algo que você disse. ”
“Eu preciso ir. A chuva já parou. ”
Maldita chuva. Por que não podia continuar chovendo por mais algumas horas? Talvez por mais alguns dias?
“Pode dormir aqui se quiser. ”
“Dormir bêbado na casa de um desconhecido é ok. Dormi sóbrio já é outra situação.” – Respondeu levantando e pondo a calça.
“Não vou ser mais desconhecido se você perguntar meu nome. ”
“O que te fez pensar que quero saber seu nome? Eu nunca gravo o nome dos caras.”
“Você disse isso ontem. Que raramente sabe o nome das pessoas com quem transa, faz tudo mais casual. ”
“Isso também é bem eu. ”
“Não transamos ainda. Então...”
“ Ainda? ”
“Eu disse que pode dormir aqui se quiser, não disse? ”
Ele estava parado na minha frente, me olhando como se tentasse decidir o que fazer. Alguns segundos constrangedores depois, começou a ler os fragmentos na parede. Pedaços de mim e agora, um pedaço dele.
“Preciso ir. ”
“Sem nem trocarmos números de celular? ”
“O que vai fazer com o número que eu te der? ”
“Marcar algo qualquer dia.”
“Não sou do tipo de sair de casal. ”
“Nem eu. ”
Levantei e coloquei uma cueca, parecia errado continuar só com a blusa agora que ele estava de calça e sapatos.
“Parece calculado. ”
“O que? ” – Do que ele estava falando?
“Trocar números, marcar encontros, essas coisas. Prefiro como aconteceu com a gente. Nos encontramos por acaso e gostei bastante de ter vindo aqui. ”
“Como fazemos pra que venha de novo. ”
“Se tivermos sorte, o vento pode nos soprar na mesma direção mais uma vez. ”
Ele sorriu e saiu, sem nem mesmo dizer adeus, até logo ou um simples tchau. O maço de cigarro ainda estava na janela, meio cheio. O balde de pipoca ainda estava na metade, a camisa dele continuou jogada perto do banheiro. Eu continuei na mesma posição olhando pra um espaço vazio na parede.
Nunca gostei de espaços vazios, não gostei da metade fumada do maço, nem da metade vazia do balde. Muito menos daquele pedaço em branco na parede.
“Eu e você podia ser, mas o vento mudou a direção.”