O Destino de Alethea
“ O que passou já se foi, o que está por vir é incerto, o que temos é o agora”
A luz do olhar de Alethea se apagava . Quase entrei em desespero, mas precisava me controlar. Anthea me ajudou a descê-la para o quarto, que ficava ao lado da sala onde eu havia ficado. A linda jovem estava imóvel, seu corpo totalmente inerte.
Anthea foi rapidamente retirando as vestes dela, e pegou uma toalha.
- Vá ali no banheiro e molhe bem, rápido!
Fiz o que ela disse, de um jeito atabalhoado.
Ela foi passando vigorosamente a toalha pelo corpo da jovem.
- Preciso retirar todo esse óleo! Com essa quantidade, mesmo estando aqui neste lugar, ela não terá chance! Me ajude!
Entendi. Peguei uma toalha maior, encharquei no chuveiro, e ajudei Anthea. Esfregamos todo o corpo da moça, até parecer que o óleo havia saído.
A esposa de Arthur estava extremamente nervosa.
- O pulso dela está muito fraco, ela mal respira. Alethea falou alguma coisa, chegou a conversar com você, Roberto?
- Ela disse que não podia viver com o que havia feito. E...disse (soluços) que me amava.
Os olhos de Anthea se encheram de lágrimas.
O corpo de Alethea estava pálido como cera. Gritei:
- As pupilas estão dilatadas! Ela morreu!
- Não, não ainda. Isso é efeito da intoxicação pelo óleo. Mas preciso chamar Arthur imediatamente. Me dê seu telefone.
Ela ligou para o celular de emergência do marido.
- Arthur, venha já aqui, é um caso de vida ou morte!
Em seguida, foi a um armário e pegou um frasco grande de Soro Fisiológico.
- Para que é isso?
- Seu ar é muito seco para nós, desidratamos mais facilmente. E assim o entorpecente contido no óleo fica mais concentrado em nosso sangue.
Como a casa ficava perto do Hospital, mais ainda vindo pelo túnel subterrâneo, Arthur chegou em seguida.
- Querida, o que aconteceu? Por que Roberto está aqui?
Ela apontou para a cama.
- Então esta é Alethea? Meu Deus, o que houve?
Enquanto falava isso, ele já estava ao lado dela, examinando-a com o estetoscópio e medindo sua pressão.
- Ela está com a pressão muito baixa. Você fez bem em instalar o Soro Fisiológico, vou acrescentar glicose, vai ser bom para ela.
Anthea pegou uma ampola de glicose e passou a Arthur, que injetou no frasco de soro.
Ele explicou:
- Embora o organismo dela seja um pouco diferente do nosso, água, sal e glicose ainda são fatores em comum. As células delas, como as nossas, precisam de glicose, água e oxigênio. as condições de atmosfera e gravidade são diferentes lá e aqui. Por isso, elas não podem ficar muito tempo deste lado, ao contrário de nós...
- Quer dizer que podemos permanecer do outro lado?
Arthur me olhou como se tivesse cometido um deslize. Anthea se antecipou:
- Pode contar, Arthur. Roberto já demonstrou ser de total confiança.
- Na verdade, podemos viver do lado de lá. Com um pouco de desconforto durante a adaptação, mas depois podemos sobreviver .
- E ela, vai conseguir sobreviver, Arthur? Eu jamais vou me perdoar se ela morrer.
- Você não podia adivinhar, Roberto. Nossos costumes são diferentes.
Anthea chegou bem perto de mim e me entregou um envelope dobrado, era de uma cor verde claro.
- Estava em um bolso interno do manto dela. Está com seu nome escrito.
Olhei o envelope. Na parte da frente estava escrito “Roberto” escrito à mão, Alethea tinha uma bela caligrafia. Relutei em abri-lo, já haviam acontecido coisas ruins o suficiente.
O texto estava escrito, em sua maior parte, em minha língua. Como ela era de outro lugar, algumas palavras estavam diferentes, mas dava para entender. Aqui, traduzi para o nosso português. Ela escreveu:
“Roberto,
Estou escrevendo estas palavras na esperança de que você tenha a oportunidade de lê-las e não me esqueça.
Observando o seu mundo, vi que as pessoas formam casais, e constituem o que chamam de famílias. Não é o que acontece no meu lado. Nossa Tradição ensina que a mulher, quando chega à idade em que já tem condições de gerar vida em seu ventre e sabedoria para cuidar de sua filha, é instruída a viajar pelos Portais para encontrar um consorte, com o qual terá sua primeira relação sexual, com o propósito de procriar. Isto porque, devido à evolução de nosso mundo, as mulheres geram apenas meninas.
O período de instrução inclui ensinamentos sobre como funcionam os órgãos reprodutores, e também autodefesa, já que algumas regiões podem ser perigosas.
Essa fase de treinamento inclui o estudo da geografia dos portais e túneis que levam ao seu mundo. Os portais para outros planetas foram fechados há séculos, porque apenas os homens da Terra seriam compatíveis para reproduzir com as Adrastheanas.
Nossa Tradição ensina que devemos procurar nosso consorte, pois a Procriação é o nosso “destino inevitável”. Uma vez encontrado, é necessário levá-lo ao Templo Sagrado, onde reside Khlûl-Hloo, a Entidade Cósmica, o Ser Supremo de Adrasthea. O consorte deve concordar com a união antes da viagem ao Templo, foi o que aconteceu com você.
Eu disse que você não tinha noção do que estava me pedindo, quando disse que queria me conhecer melhor e “iria aonde fosse preciso”. Você ainda acrescentou que eu era o seu destino.
Segundo a nossa Tradição, após a noite de núpcias, as mulheres de nosso mundo acreditam que, ao entregar seu companheiro para a Entidade Cósmica, Khlûl-Hloo, ele será transportado para um “mundo melhor”.
Após engravidar do seu consorte, a mulher é considerada sagrada e recebe tudo o que necessitar ; porém, quando a filha chega a uma determinada idade, a mãe deve ir ao Templo, onde deverá ir ao encontro de Khlûl-Hloo para que ele a leve para junto de seu homem.
Foi o que aconteceu comigo. Não conheci meu pai, e após minha mãe ser levada, minha criação ficou por conta das Sacerdotisas do Templo.
Esta é a Tradição de Adrasthea. E foi o que me fez tentar levá-lo ao nosso Templo Sagrado.
No entanto, depois que Anthea o levou e o deixou a salvo em seu mundo, ela me procurou e me perguntou o que eu realmente sentia por você. Eu disse que o amava, e que seria meu destino ir ao Templo com você. Então ela me fez uma revelação que mudou tudo em minha vida. Adrasthea, o nome de nosso mundo, era o nome de uma Deusa de inigualável beleza, justa e bondosa.
Em um trágico dia, através de um dos muitos portais, surgiu Khlûl-Hloo, uma entidade antiquíssima, provinda dos confins do Universo. Esse ser dizimou milhões de pessoas, o que resultou na interferência direta da Deusa. Adrasthea conseguiu, a muito custo, confiná-lo em uma construção fortificada de pedra e fechar a passagem por onde ele veio, porém a batalha a deixou exaurida, quase perdendo sua essência, e ela precisou se afastar até se recuperar.
Nesse meio tempo, o povo foi perdendo sua fé, e a egrégora que lhe dava forças foi se reduzindo. Algumas Sacerdotisas , raciocinando erroneamente, começaram a acreditar que Khlûl-Hloo passaria a proteger nosso mundo se fossem feitos sacrifícios a ele. A entidade era um ser provido de inteligência, mas era impossível saber o que pensava. Na verdade, ele se alimentava do corpo e da essência das pessoas sacrificadas, saciando sua fome. Seus tentáculos imensos passaram a se estender pelos túneis, poupando apenas aqueles que viriam ao nosso mundo para servir de alimento.
O que me fez realmente acreditar no que Anthea me disse foi o que aconteceu na noite seguinte ao nosso trágico incidente. Eu estava deitada, e senti uma presença sobrenatural perto de mim. Ela disse que era Adrasthea, e que precisava de mim para contatar você. Senti que minha essência saiu do meu corpo e, de alguma maneira, chegou até você. Eu podia vê-lo claramente. Uma voz que, ao mesmo tempo, era minha e não era, disse:
- Calma, Roberto. Não vou lhe fazer mal.
Você se encolheu todo e se cobriu com o lençol. Senti meu rosto colando ao seu. Depois , minhas mãos seguraram seu rosto, e olhei bem no fundo dos seus olhos. A Deusa falou através de mim:
- Não se preocupe. Estou vendo dentro de você. Preciso saber se é digno para que eu possa confiar na sua pessoa.
Você perguntou: O...O que está vendo?
E minha voz respondeu: - Em breve entenderá.
Houve um clarão intenso, e voltei ao meu corpo. Não vi ou senti mais nada, mas tive a certeza de que você seria importante para alguma coisa. Mas eu não poderia mais viver, sabendo que eu quase havia levado você para a morte certa, então decidi ir ao seu mundo para vê-lo apenas mais uma vez e me despedir antes de morrer.
Não espero que acredite no que estou escrevendo, mas peço que me perdoe, porque fui criada e educada em uma crença infundada.
Eu o amei de verdade, tenha a certeza.
Adeus”
Eu estava chorando convulsivamente quando terminei de ler a carta, não tenho vergonha de confessar. Principalmente depois de ler a parte onde ela havia aparecido no meu quarto, incorporada pela Deusa.
( nota do autor: isto está descrito no conto “Uma Freira Muito Estranha - Parte 6 - De Volta à Vida Normal”)
- Pode chorar, Roberto, mas vamos precisar de sua ajuda.
- Como assim, Anthea? Não sou médico, não entendo nada...
- Você deve lembrar que teve sensações diferentes quando se aproximou dela.
- É verdade, como se fosse uma descarga elétrica.
- Isso é devido à troca de energia que houve entre vocês. Naquelas ocasiões, a troca era mútua, vocês dois estavam saudáveis, e era parte do relacionamento que se iniciava.
- E agora?
- Agora, se for possível, peço que você “doe” parte de sua energia para ela, já que são compatíveis.
- E como eu faço isso?
- Peço que você tire sua roupa e se deite com o corpo colado ao dela.
Foi o que fiz. Deitei-me, nu, e a abracei. Ela continuava pálida como cera, e gelada.
- Ah Deus! Ela está...
- Não, não está. Mas pode morrer se você não ficar ao lado dela.
- E quanto tempo pode levar até ela melhorar?
- Roberto...ainda há coisas sobre nós que você não sabe, e nem poderia imaginar. Mas eu lhe imploro: não saia daí, a não ser para ir ao banheiro.
Nessa hora, eu esqueci do meu trabalho e de tudo o mais. Alethea havia sido criada em uma tradição absurda, em um mundo onde um monstro terrível era o “deus” , e a verdadeira Deusa , pelo que entendi, havia me testado para ver se podia confiar em mim, para alguma coisa que eu sequer imaginava.
CONTINUA