...com uma mulher heterossexual
Eu completara 18 anos duas semanas antes, quando Rafaela me ligou certa manhã. Do outro lado da linha, pessoa eufórica. “Você passou, Dalila! Você passou!”. E eu com ambas as mãos no telefone, ora rindo ora enxugando lágrimas por debaixo dos óculos, tentava rir também. De alegria por logo ter conquista a adicionar ao livro de memória e à toa sob os exageros de Rafaela. Como falava! Como se repetia!
Mês depois estava eu de malas prontas, à porta de casa. Papai revisava detalhes finais do carro. Radiador? Confere. Óleo? Confere. Tanque cheio? Faltava pouco para estar cheio, mas foi conferido mesmo assim. Meu irmão estava na sala de estar (me dera beijo no rosto hora antes, a fase” no videogame estava interessante demais para poder dar atenção a outros eventos).
Ah! Campinas me aguardava. Num apartamento, modesto até, no terceiro andar do prédio, não tão bem localizado e com eco forte demais. Parei no estacionamento e sozinha subi três lances de escada e desfiz as malas. As aulas começaram na segunda. Estava dois dias atrasada, mas tudo bem. A satisfação sobressaía. Um único objetivo. Da janela eu vi os prédios e o transito. Era adulta agora. E de cima ouvi barulho.
Curiosa, decidi verificar, me apoiando no parapeito.
Rosto encoberto por cabelos longos e castanhos, olhos um tanto tristes também se perdiam no vai e vem dos carros. Como se chamava? Não sabia. Mas ali não estava pessoa completa. Estava metade. Não sabia detalhes, mas era como se o batom cobrisse só o lábio inferior. Apenas a orelha esquerda possuísse brinco, houvesse delineador apenas no lado direito do rosto. Metade. E este paradoxo de tristeza acima (ela) e orgulho abaixo (eu) me paralisou por momento ou dois. Ainda havia bastantes caixas para esvaziar. E logo, o par de olhos carentes me percebeu. Riu.
Acenou.
Acenei de volta. Uns 38 anos. Bela? Foi um dia. E tal resquício era perceptível. Não incompleta como cri. Não no sentido físico. Ambos os lábios estavam pintados. Ambas as orelhas possuíam brincos. Ambos os lados do rosto possuíam delineador. Ambos os acenos respondidos.
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Lâmpadas apagadas. Era noite de sexta feira e a luz das imagens da TV se refletiam e se perdiam em mim. Ouvi móveis sendo arrastados no quarto andar. Eu estava sozinha. Cidade enorme quase me engoliu. Tão diferente do ninho. Tantas pessoas mal-encaradas, com pressa, com fome. Tantas exigências intermitentes e o sonho já não era mais tão sonho. Possuíam funcionários demais. Mais uma seria redundante. Mas os estudos precisavam de pagamento. Ninguém queria saber.
Quando ouço pancada surda vinda do andar de cima. Era ela.
Não pensei duas vezes. Saí do transe televisivo e corri pelas escadas, segurando firme no corrimão. Forte era o eco do colidir de meus pés com os degraus. O caminho e o corredor pareceram infinitos. Mas a porta do 41 apareceu de surpresa. Campainha. Espera. Campainha. Espera. Agonia. Campainha e batidas na porta. “Tem alguém em casa?!”. Ouvi alguém gritar. Era eu ou o meu desespero. E no instante seguinte, estava aberta a porta.
De camisola, um tanto perplexa, abriu. E riu disfarçado. E este suave gesto desarmou meu estado de alerta. Estava tudo bem. E o suspiro de alívio foi ouvido por todo o mundo.
Após ser convidada para entrar e fazer vistoria pelo apartamento, sou contemplada: cada centímetro cúbico de meu rosto. Você é igual a minha falecida filha. Se estivesse viva, teria sua idade. E acariciou meu rosto com a palma quente. E procurou por mais traços dela em meu rosto. Eu mesmo quis procurar traços meus nela. Ou de minha mãe. Ou da primeira mulher existente da forma como conhecemos mulheres neste mundo. Mas nada. Nos olhos dela, eu só via meu reflexo.
No silêncio, ainda sentindo a mão quente no rosto, agora em subida e descida, ouvi o tiquetaquear do relógio. Quantas horas passaram? E vez por outra ouvia sons do trânsito lá fora. Você quer um abraço?, perguntei. E a resposta foi sim. E este abraço infinito teve início. Primeiro, sem jeito, mas com a adequação dos corpos e a troca satisfatória de energias, logo estávamos habituadas. E este abraço pareceu ser forte o bastante para unir duas gerações. Como se o mundo fosse apenas nós duas. E cada planeta possuía sua forma e propósito. Enfeites do universo, iluminadas por estrelas. Já não me via no reflexo dos olhos, mas tinha meus cabelos misturados nos dela. E as bochechas, orelhas...
Era tarde. A puxei pela mão e a pus na cama. É hora de dormir!
E deitamos juntas. Abraçadas. E conheci cada fio daquele cabelo castanho enquanto o tirava do pescoço dela. Ora com a mão, ora com o nariz. Você quer um beijo?, uma de nós perguntou. Sim, uma de nós respondeu. No rosto, ou na testa. Ou onde preferir.
Foi a fagulha. E esta fagulha pegou fogo na sequência. Passamos a noite juntas. Horas e horas. Repetimos diversas vezes.
Mulher e menina...
Mulher e mulher. Ambas heterossexuais. Ambos conhecendo algo novo. Sororidade? Não sei. Posso apenas afirmar o fato de esta mesma noite ter se repetido tantas e tantas vezes. Durante os anos de faculdade. Meu futuro era meu somente, pensei. E hoje relembro, com filhos, marido...